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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern

Estratégia

Por que dizer “adultização” e não “pedofilia”?

Denúncias recentes criaram neologismo para definir crime já existente. Não é acidental: há uma estratégia arriscada por trás. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Um dos vídeos que mais viralizou no Brasil recentemente tornou conhecido o youtuber Felca — mas também condenou à eternidade a palavra "adultização". O vídeo era uma denúncia contra o influenciador Hytalo Santos por organizar eventos com crianças em um ambiente hipersexualizado, como se fosse um reality show.

Crianças eram vistas em seu condomínio fazendo danças eróticas, em situações constrangedoras de cunho sexual e até mesmo recebendo presentes como implantes de silicone. Hytalo Santos e seu marido foram posteriormente presos.

A tônica, entretanto, foi o neologismo inventado ad hoc para essa situação. Felca denunciou um clima de "adultização". Muitos especularam as razões; poucos comentaram sobre a mudança linguística.

Adultização? O que raios é adultização? Não estamos falando da velha e má sexualização de crianças? Por que usar outra palavra — inventada, artificial, repentina?

Felca, de um youtuber conhecido apenas por uma bolha, virou figura carimbada na Rede Globo em uma semana — com direito a Fantástico, Altas Horas e Encontro com Fátima Bernardes, este último programa entupido de temas de conteúdo discutível em um horário em que crianças desarmadas e desacompanhadas assistem à TV. Só faltou menção entre Faustão e Gugu disputando audiência no domingo, entre Latininho de um lado e Banheira do Gugu de outro.

Vários youtubers do conglomerado de proteção ideológica e perseguição a dissidentes já estavam com vídeos muito bem editados poucas horas após as denúncias felquianas — sim, inclusive Felipe Neto. Projetos de lei contra a "adultização" já foram aventados logo no dia seguinte. Será mesmo?

A Assembleia da Paraíba já aprovou a "Lei Felca". Erika Hilton e Nikolas Ferreira cobraram juntos posicionamento das redes. Até Hugo Motta se pronunciou — o homem colocado na presidência da Câmara para não deixar passar nada, a não ser o que destrua a direita.

A preocupação repentina com a adultização dominou as manchetes na manhã seguinte e segue sendo tratada como um dado da realidade, e não como uma artificialidade dos últimos dias.

"Felca: denúncia sobre adultização de crianças tem resultados", explica uma manchete. Parece que "Felca" agora já é um tema em si, como "Rio de Janeiro: tiroteio no Vidigal deixa 3 mortos". "O caso de ‘adultização’ que mais chocou Felca". "O que Felca lê? 6 livros que o influenciador mostrou no Fantástico", pergunta o Estadão, transformando Felca em nosso novo Câmara Cascudo. "Denúncia Felca: adultização afeta desenvolvimento, explica especialista", estampa outra manchete. Sempre os especialistas — e já temos até especialistas em um termo criado anteontem.

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Controle da linguagem

Alguns termos entraram no vocabulário público recentemente, não como uma mudança horizontal, paulina e orgânica, como é comum no mundo da língua. Foram impostos de cima para baixo, repentinamente, por órgãos de mídia que funcionam, não raro, como órgãos oficiais do governo. Fake news. Desinformação. Discurso de ódio. Extrema direita. Desordem informacional. Impossível imaginar qualquer pessoa defendendo a censura (desculpe-nos, a "regulamentação") com base em tais palavras há meros 10 anos.

Mesmo vocábulos que possuíam um sentido bem definido passaram, repentinamente, a receber uma repaginada ideológica radical. As mais recentes vítimas foram instituições e soberania — para não falar do próprio vocábulo democracia.

Um transeunte desavisado, ao cruzar com essa tríade ideológica, imediatamente trata de proteger as costas contra uma parede ou de segurar em algo bem pesado. Praticamente nada de bom foi feito em defesa dessas palavras na última década.

Para linguistas, filósofos da linguagem e qualquer pessoa atenta a movimentações, digamos, estilísticas no poder, um neologismo nunca é gratuito. Certas palavras já carregam, sem que as pessoas percebam, alguns traços de sua origem, de um grupo, de um estilo, de uma região, de uma corrente ideológica.

O que é chamado de "santidade" varia radicalmente de um católico para um protestante — tal como a palavra "cristão", que, para um protestante, geralmente exclui os católicos.

Para um paulista, um sorvete pode ser de massa ou de palito — enquanto, para um carioca, sorvete é apenas de massa, e o de palito só pode ser chamado de picolé.

Se quer uma prova cabal desse efeito da marca grupal de determinados vocábulos, pense rapidamente: se uma pessoa usa uma palavra como "golpista", eu já sei qual a opinião dela sobre José Saramago e sobre o último filme de Wagner Moura — seja ele qual for.

Termos criados por grandes agências e impostos ao debate público de cima para baixo pelos grandes divulgadores praticamente sempre carregam escondidos, em seu código-fonte, uma marca ideológica.

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"Fake news"

Quando Donald Trump foi eleito pela primeira vez, em 2016, a mídia mainstream, que jurava que a eleição de Hillary Clinton era favas contadas, passou quase 3 semanas sem explicação para ter errado tanto.

Logo ressuscitaram uma reportagem da revista The Atlantic, que afirmava que a eleição de Trump foi devida a alguns garotos na Macedônia (sim, aquele país entre a Grécia e a Sérvia, com 1,8 milhão de habitantes) que criaram sites de notícias falsas dos quais ninguém jamais ouvira falar. Assim, estava criada a explicação: os EUA e seus 300 milhões de habitantes foram enganados por meia dúzia de macedônios que produziam fake news.

De um termo usado por um jornalista da Slate à preocupação monotemática do planeta — que chegou a gerar 24% das buscas do Google em um único dia — foi questão de menos de duas semanas. Hillary Clinton até hoje cita a reportagem da Atlantic em quase todas as suas enfadonhas entrevistas.

Claro, observando-se só pela externalidade, a expressão fake news significa apenas e tão somente "notícias falsas", o que seria uma neutralidade objetiva. Mas não é assim quando o vocabulário é trabalhado por agências especializadas: fake news, na prática, é uma acusação e refere-se unicamente a publicações conservadoras na internet.

Não adianta dizer que "a esquerda vive de fake news", que "as verdadeiras fake news vêm da grande mídia". O entendimento do termo carrega um significado oculto. Um script, como o de um vírus de computador, operado às escondidas. Um cavalo de Troia.

Fake news, como expressão, sempre foi entendida como um crime em busca de um Código Penal, cometido única e exclusivamente por direitistas. Foi assim contra Donald Trump. Foi assim que acusaram Breitbart, Gateway Pundit e tantos outros sites que, na Wikipedia, são chamados de "divulgadores de fake news" já no parágrafo inicial. Foi assim na CPMI das Fake News. Foi assim com o PL das Fake News de Orlando Silva (que exclui categoricamente a grande mídia da possibilidade de ser censurada).

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Proteção ou censura?

Agora temos a adultização. Um recorte novo. Por que não dizer apenas que se está combatendo a pedofilia? Parece que criticar pedófilos, curiosamente, não tem produzido resultados muito positivos entre a esquerda.

A série Radicais, da Globoplay, faz uma bizarra crítica não a pedófilos, mas a... quem combate pedófilos nas redes sociais. Esta é a tal "extrema-direita", tão demonizada a ponto de gerar um totalitarismo bizarro no Ocidente, principalmente depois de 2020 — e que culminou na facada em Bolsonaro e nos assassinatos de Miguel Uribe e de Charlie Kirk.

Combater a pedofilia nas redes sociais? Ruim, pelo visto. Dá até certo bônus moral para a direita, não é? Parece que eles estão certos e que a cultura de sexualização infantil, que domina o funk, a MPB, a Rede Globo, o Carnaval, a Parada GLS (perdoem-me, parei de me atualizar da sigla em 1998) e tantas outras coisas das quais não podemos falar — sob pena de problemas com a polícia e a lei —, segue intocada. Combater a "adultização"? Aí há uma enxurrada de posts no Google, todos curiosamente de agosto para cá.

Simplesmente porque "adultização" não faz referência à cultura da pedofilia, da sexualização precoce, de músicas vulgares, do É o Tchan, da Anitta e quejandos.

Combater a "adultização" fez com que o termo "regulamentação" soasse bem. Fofinho. Limpo. Bem intencionado

Veja só: sem a censura às redes, vai haver muita "adultização" por lá, por isso precisamos "proteger as criancinhas". Meta e Google já começaram a se mexer sobre a adultização. Algum teórico da conspiração poderia dizer que adultos inocentes serão calados sem proteger nenhuma criancinha no caminho.

Ah, um dos projetos (são vários) para combater a adultização das redes sociais fala em discurso de ódio e eleições. Nenhum critica figurões do estamento burocrático e artístico já pegos com a boca na botija. E botijas de pré-adolescentes.

Qual foi a última coisa boa que fizeram jurando que iriam nos proteger?

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