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Escrevo esta coluna no Dia de Ação de Graças, o feriado mais importante do ano aqui nos Estados Unidos. Nesse dia, milhões de americanos cruzam o país por terra ou pelo ar para passar alguns dias com suas famílias. É o momento de avós reverem filhos e netos, de irmãos se reencontrarem, de amigos de infância se reunindo mais uma vez. Mas é, principalmente, dia de agradecer.

A história mais difundida sobre esse feriado diz que o primeiro Dia de Ação de Graças foi comemorado em 1621, quando colonizadores e índios americanos celebraram juntos a festa da colheita de outono em Plymouth. No entanto, há registros anteriores a essa data de celebrações semelhantes, como a do espanhol Pedro Menéndez de Avilé, que convidou os membros de uma tribo indígena local para celebrar uma missa seguida de um jantar, agradecendo a Deus pela chegada segura de sua tripulação à Flórida. Esse encontro se deu em Saint Augustine, cidade mais antiga dos Estados Unidos, no ano de 1565.

Sem deixar de lado a relevância dos registros históricos, o que realmente importa nesse feriado tão querido aos americanos é o seu caráter de agradecimento. Em um mundo em que homens se gabam por seus feitos, em que as pessoas enchem as mídias sociais com evidências fotográficas e filmográficas de suas realizações, e em que o humanismo tem sido levado ao extremo e soterrado a cultura de adoração e prostração ao divino, o ato de agradecer a Deus pelas bênçãos conquistadas chega a parecer algo impróprio, digno apenas dos fracos e fracassados. Além disso, o homem contemporâneo é marcado pela crença de que cada pessoa é capaz de criar seu próprio destino, e que cada dia que amanhece é um novo ponto inédito na linha infinita do tempo.

Essa noção linear de tempo não é, de forma alguma, a noção que prevaleceu no decorrer da história humana. Os antigos entendiam que tudo é cíclico, entendimento esse que tem muito mais respaldo no mundo real que a noção de tempo linear. Que o digam as estações do ano, as órbitas dos planetas e da lua, as repetições infindáveis dos fenômenos naturais, os batimentos cardíacos de cada um de nós e assim por diante. Nesse contexto, cada colheita de outono era recebida com muito agradecimento a Deus, pois seria a garantia de um inverno com comida e mantimentos.

Hoje, celebramos a “vitória” sobre os ciclos. Não importa se está nevando ou se o sol derrete o asfalto lá fora, os supermercados estão sempre cheios de tudo o que precisamos. Nossos sistemas de aquecimento e resfriamento mantêm a temperatura de casa e de locais públicos sempre no ponto ideal. O sujeito que sente fome no meio do dia pode parar em qualquer lanchonete ou restaurante e suprir suas necessidades até mesmo com pouco dinheiro no bolso. O mundo do século 21 é definitivamente menos convidativo ao agradecimento que o mundo dos séculos anteriores. E é justamente por isso que é tão importante entender a debilidade do ser humano e como isso se traduz na necessidade de sermos gratos.

Mas, infelizmente, parece que somente quando somos confrontados de forma traumática por essa realidade é que a compreendemos mesmo. Pessoas que passam por experiências como perder alguém querido por conta de um acidente, sofrer uma devastação por causa de uma tragédia da natureza ou ser acometido por uma doença grave ou incurável, só para citar três exemplos, têm muito mais facilidade de entender o que essa debilidade significa. Somos fracos, pequenos e incapazes de controlar nosso destino, mas trezentos anos de iluminismo nos fizeram crer no contrário.

A você, leitor ou leitora que acompanha este colunista, deixo um convite à reflexão. Não o deixo como alguém que fala sem experiência própria; muito pelo contrário. Desde muito cedo, me identifiquei com a noção do homem que cria seu destino. Sempre acreditei que poderia moldar meu futuro exatamente do jeito que eu determinasse. Quando conquistava algo, em vez de agradecer eu usava a conquista mesma para turbinar minha autoestima e minha certeza de competência profissional. Até que vieram a morte de meu pai num acidente de motocicleta, a falência do primeiro casamento, o declínio financeiro, a pedra no rim, a mudança de país, além de tantas outras experiências menores mas igualmente esclarecedoras de minha debilidade e fraqueza. Hoje, em vez de me vangloriar quando algo vai bem, agradeço a Deus; em vez de crer na sorte, creio na providência; em vez de me sentir competente, me sinto abençoado. Só assim sou capaz de enfraquecer as partes baixas da minha alma e fortalecer as partes altas, aquelas que se conectam diretamente ao divino; só assim posso dizer que sou feliz.

Feliz Dia de Ação de Graças.

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