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A cantora e compositora Tracy Chapman, em foto de 2009, durante show na Bélgica.
A cantora e compositora Tracy Chapman, em foto de 2009, durante show na Bélgica.| Foto: Hans Hillewaert/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license

E o retorno de Tracy Chapman à fama, sendo que faz 16 anos não lança um disco, não tem perfil em rede social, nem smartphone? Pelo menos não tinha até anos atrás e, pelo que andei pesquisando, continua sem. Curioso, fui atrás pra tentar entender.

Caso não esteja a par da “viralização” da semana, leitor bem-aventurado, a fama de Tracy se deve à cerimônia do Grammy ocorrida no último domingo. Graças à regravação de Fast Car, Luke Combs (quem? Não sei) disputava o prêmio de melhor performance solo country – que venceu, assim como a de melhor canção de 2023 pela Country Music Association (CMA), tornando Chapman a primeira compositora negra a ganhar algo nessa premiação. Tracy reapareceu na cerimônia tocando a música ao lado do cantor. Foi ovacionada e o vídeo “viralizou” mundo afora, colocando a gravação original e seu primeiro álbum, de 1988, no topo das paradas.

Aquele primeiro álbum, aliás, teve um sucesso inesperado também, o que lhe garantiu um segundo, lançado no ano seguinte. Entretanto, entre um e outro, a fama conquistada já incomodava. Não conseguia levar a mesma vida de antes, com seus amigos evitando sair com ela para jantar ou ir ao cinema, pela atenção que despertava. Em Crossroads, música que também dá título ao segundo disco, cantou sobre como se sentia e, em retrospecto, também pode ser considerada como um manifesto: “Todos vocês pensam que comandam minha vida / Dizem que eu deveria estar disposta a me comprometer / Eu digo para todos vocês, demônios: voltem para o inferno / Eu salvarei minha alma, salvarei a mim mesma”.

Muito pouco se sabe sobre Tracy Chapman e até aquilo que parece que sabemos não é bem o que parece

Não significava abandonar a carreira, mas vivê-la tentando evitar perder sua alma para o show business, mantendo-se ativa e o mais distante possível dos holofotes. Assistindo-a no último Grammy, vestida com simplicidade, sem maiores produções, como uma pessoa comum, contrastando imensamente com o circo que havia à sua volta feito de gente estranha numa festa esquisita, repleta de roupas que pareciam fantasias e maquiagens ridiculamente chamativas, é possível entender sua decisão de décadas atrás. E o acerto dessa decisão.

Seria por isso que o segundo disco não foi tão bom de vendas e o terceiro, Matters Of The Heart, lançado em 1992, ainda pior? Talvez, talvez. Mas depois de um hiato de três anos, Chapman lançou seu quarto álbum, intitulado sugestivamente New Beginning (“Novo Começo”), sem mudar estilo ou postura, tendo a canção Give Me One Reason obtido enorme sucesso, até mais do que as anteriores, como Fast Car, recolocando-a nas “paradas de sucesso”, com as vendas aumentando significativamente.

Parecia que Tracy estava de volta ao jogo, mas não. Ficou cinco anos sem lançar novo disco (uma eternidade na indústria musical). Muitos anos depois, a escritora Alice Walker revelou que viveu um relacionamento amoroso com Tracy naquela época, em meados dos anos 1990. Em retrospecto, é inevitável não associar tanto o “sumiço” de Tracy por estar nesse relacionamento (quis vivê-lo, não precisava de mais nada) quanto seu reaparecimento no ano 2000, com Telling Stories, disco repleto de músicas falando de amores perdidos ou falhados. Elas haviam terminado.

A música que dá título ao disco, nesse contexto, ganha significado revelador: “Há ficção no espaço entre / Você e todo mundo / Dê-nos tudo o que precisamos / Conte-nos mais uma história triste e sórdida / Mas na ficção desse espaço entre nós / Às vezes uma mentira é a melhor coisa”. E esse espaço entre ela e o mundo, essa distância, foi sempre mantida, com ela jamais confirmando se houve o relacionamento com a escritora, por exemplo, ou qual seria sua orientação sexual.

Muito pouco se sabe sobre Tracy Chapman e até aquilo que parece que sabemos não é bem o que parece. Por exemplo, sempre foi considerada uma continuadora do folk de protesto dos anos 1960 e 1970, da linhagem de Bob Dylan, Joan Baez e Joni Mitchell. De fato, nos seus primeiros discos, até New Beggining, várias de suas músicas possuem temas políticos, ativista até, mas a partir de Telling Stories isso praticamente desapareceu, tratando de temas mais universais e menos pontuais.

Das poucas entrevistas que deu pela carreira, sempre que perguntada sobre isso, negou que fosse militante com sua música, nem sequer se considerando uma ativista, apenas tentando ajudar naquilo que achava que poderia ajudar, conforme suas crenças e valores. Disse apreciar a música daqueles compositores folk, mas que sua escola musical foi outra, o R&B, o jazz e o gospel, porque era o que seus pais escutavam em casa. Aliás, considera que seu estilo deriva mais do fato de compor com violão do que outra coisa.

Ao que parece, Tracy passou por outras encruzilhadas em sua vida, sempre escolhendo o caminho que leva à salvação

Se algo conhecemos de Tracy Chapman é aquela parte que não manteve à distância, mas nos convida a conhecer em forma de música. Neste sentido, os três discos lançados entre 2003 e 2008, somados a Telling Stories, mostram outra Tracy Chapman, não só diferente da que especulam, mas da que ela mesma deixava entrever antes. Unsung Psalm e Devotion, por exemplo, em Telling Stories, flertam com o transcendente. O que se aprofunda no introspectivo e melancólico álbum Let It Rain, de 2002, com canções como Say Hallelujah.

Isso se torna explícito no disco Where You Live, de 2005, que abre com Change: Se você soubesse que morreria hoje / Se você visse a face de Deus e do amor / Você mudaria?”. O processo para chegar numa resposta aparece em Before Easter: “Vou me esconder / Esconderei-me dEle / Esconderei-me, mas não o pecado / Se Jesus voltar novamente / Eu tenho a vara, a agulha e a garrafa da tristeza / E Jesus, Jesus, Jesus sabe”. Ainda canta sobre ter e não ter medo do Paraíso em Be And Not Be Afraid, mas a resposta mesmo à pergunta de Change veio no seu último disco lançado, em 2008, Our Bright Future, na canção Save Us All: “Eu sei que Jesus me ama / Em meu coração sei que isto é verdade / Sei que o bebê de Maria / Veio ao mundo / Só para me salvar”.

Impossível não lembrar de Crossroads, quando cantava que iria salvar sua alma. Ao que parece, Tracy passou por outras encruzilhadas em sua vida, sempre escolhendo o caminho que leva à salvação. Será por isso que, depois de 2008, nunca mais lançou novo disco, nunca quis entrar em redes sociais, nem celular possui? Mais do que isso. Ela poderia estar imensamente famosa na atualidade, mais do que nunca, pois no jogo reinante do progressismo vigente ela teria uma cartela premiada: afinal, é mulher, negra, seria homossexual, progressista e ativista social. Certamente ganharia muito destaque por tudo isso, mas nunca o fez, pelo contrário.

Tracy só apareceu novamente em público em raras ocasiões, todas quando quis, por razões pessoais, como na despedida de David Letterman da tevê, em 2015, quando cantou Stand By Me, apenas com seu violão – versão que pode ser escutada em seu disco de hits lançado no mesmo ano de 2015. Voltou a aparecer na tevê quando da eleição presidencial americana de 2020, segurando um cartaz pedindo às pessoas para irem votar e, agora, no Grammy de 2024. Com a viralização do vídeo da apresentação, várias pessoas de São Francisco, onde ela mora, postaram em suas redes sociais o espanto de a conhecerem do dia a dia, vendo-a em padarias, livrarias, nas ruas, mas jamais suspeitando que fosse quem é.

Além da humildade, é preciso destacar sua integridade. Soube também que Chapman não costuma aceitar que suas músicas sejam regravadas ou usadas como samplers em outras canções, tendo inclusive processado uma rapper qualquer por ter feito isso, não só sem autorização, mas com sua expressa recusa. O que desperta outra curiosidade: por que permitiu que Luke Combs gravasse Fast Car? Pelo que se sabe, Tracy exige conhecer primeiro quem faz as solicitações, querendo saber de suas razões para tanto. Luke contou a sua. Na infância, seu pai colocava a música para escutar no carro o tempo todo e, como ele estava fazendo um disco sobre amadurecer, queria gravá-la. Conseguiu não só a autorização, mas o privilégio de ter Tracy ao seu lado no Grammy. Não é uma mulher admirável?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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