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Acho que era agosto de 1992. Não vou pesquisar para confirmar, vai um texto escrito direto da memória, com todas as suas faltas, trocas, erros. Não lembro se cheguei a pintar a cara também, talvez tenha feito discretas faixas verde-e-amarelo nas bochechas. Mas lembro de ficar espantado com a organização toda.
Tínhamos autorização dos pais para sair do colégio, escolta policial para irmos do bairro São Lourenço à Praça Santos Andrade, onde encontramos alunos de outras escolas e alguns trios elétricos para a manifestação contra Fernando Collor. Isso contrastava demais com a absoluta inépcia, salvo para organizar festas, do nosso grêmio estudantil, do qual eu fazia parte.
Alexey era nosso presidente. Estávamos na mesma turma do 2.º ano do que à época se chamava “segundo grau”, hoje parece que é “ensino médio”. Conhecemo-nos naquele mesmo ano. Éramos colegas, não tínhamos proximidade ainda para nos considerarmos amigos, por isso me surpreendi quando ele me convidou para participar da sua chapa que concorreria ao grêmio.
A razão só poderia ter sido por ele ter visto algo em mim que eu mesmo não enxergava. Vai ver foi pela minha recém-despertada coragem (ou interesse) para dar pitaco e fazer perguntas durante as aulas do professor Marquinhos, de História. Alexey era outro que gostava da matéria, do professor.
Jamais esqueci do quanto Alexey prestou atenção sincera ao meu melhor. Acho que só agora me dou conta do quanto isso me ensinou a tentar fazer o mesmo com os outros
Também lembro do dia em que o psicólogo da escola passou pela sala perguntando aos alunos sobre o que viam de errado nela. Acho que foi a primeira – e, no meu caso, única – vez em que vi um funcionário se interessar pelo que os alunos tinham a dizer sobre o colégio. Foi então que eu resolvi falar, sei lá por quê. Na minha cabeça, foi pelo que eu disse naquele dia (não lembro mais o que disse, porém) que Alexey decidiu me convidar para sua chapa, que saiu vitoriosa.
Na primeira reunião depois da eleição, lembro dele sentado, mais ouvindo do que falando. Não lembro da pauta, mas não tinha a ver com o setor em que eu atuaria, o esportivo. Depois de um tempo de falação sem ir a lugar algum, ele se virou para mim e perguntou o que eu achava do que se discutia. Tomei um susto. Eu mal conhecia os demais, estava ali única e exclusivamente por ele ter me convidado.
Não lembro o que respondi, mas jamais esqueci do quanto ele prestou atenção sincera ao meu melhor. Acho que só agora me dou conta do quanto isso me ensinou a tentar fazer o mesmo com os outros. A prestar atenção mesmo quando não pedem por isso, nem esperam. A levar o outro em consideração, mesmo quando o outro não reconhece ou admite que é isso que quer, que precisa. A reconhecer seu valor, mesmo quando acha que não vale grande coisa ou mesmo nada.
Alexey era um líder nato. Faltavam liderados, porém. Talvez fôssemos bem intencionados, mas não tínhamos a menor condição de fazer qualquer coisa. Não entendíamos nada da burocracia escolar, política estudantil, éramos típicos jovens cheios de energia e convicções e nenhuma noção de como atuar na prática. Por isso aquela organização toda das passeatas me espantou. Não tinha como ser algo preparado por nós, por uma UNE da vida, aquilo vinha “de cima”. Estávamos sendo claramente instrumentalizados, mas com consentimento, era o que precisávamos, o que o país todo queria.
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Só fui me dar conta e elaborar isso melhor muitos anos depois. Acho que nunca cheguei a conversar com Alexey sobre isso. Ele saiu do colégio naquele ano. Esbarramo-nos várias vezes depois, especialmente na época da faculdade. Ambos cursávamos Direito. Mas lá se vão 30 anos disso e os encontros escassearam, embora tenhamos vários amigos em comum. Em um desses encontros, matei a curiosidade. Não precisou falar muito para eu entender que tinha aprendido a lição daquele tempo de política estudantil e se distanciou da política, mantendo-se assim, ao que me parece.
Com as redes sociais, voltamos a nos falar de vez em quando. Quase sempre motivados por alguma música que eu ou ele postamos em stories do Instagram. Tínhamos gosto semelhante. Lembro de um “dia de formação” que a escola proporcionava, levando a turma a passar o dia no parque do próprio colégio, onde fazíamos nosso churrasco e passávamos um dia da semana como se domingo fosse.
Naquele ano de 1992, na churrasqueira em que ele estava, tocava U2. Não reconheci e, desagradável como tenho facilidade em ser (hoje, bem menos), perguntei sarcasticamente se era A-ha. Na época, A-ha não era cult, como parece que agora se tornou. Estou tentando lemb... lembrei. Tocava Bad, do quarto disco da banda, do já então distante 1984.
Fazia tempo que não a escutava com atenção. Não lembrava que a letra era sobre um amigo viciado em heroína que o cantor tenta ajudar, sem saber como. Por isso repete e repete seu “Se eu pudesse, eu faria”. Nem eu nem Alex éramos ou fomos viciados, tampouco nossa amizade, se um de nós se perdesse assim, seria próxima o suficiente para poder ajudar um ao outro. Mas tenho a certeza de que Alexey tentaria, talvez eu também.
Alexey era um líder nato. Faltavam liderados, porém. Talvez fôssemos bem intencionados, mas não tínhamos a menor condição de fazer qualquer coisa
Na terça passada, Alexey passava pela catraca da portaria do prédio onde possui escritório, sofreu um infarto fulminante e não resistiu. Deixou esposa e dois filhos jovens, creio que de 18 e 16 anos, que não conheci, mas, se este texto porventura chegar até eles, que seja como um abraço. Se pudesse, faria mais contra o desespero, o deslocamento, a separação, a condenação, o isolamento, a desolação que a morte traz.
Adianta quase nada dizer, neste momento, que o luto é uma noite sem estrelas, chuvosa, cuja água evapora antes de nos tocar, pois atravessamos uma estrada em chamas. De pouco vale dizer, neste momento, que as chamas se apagarão, a chuva cessará e o dia voltará a nascer. Embora tudo isso seja verdade, sem que uma mísera lembrança seja apagada, esquecida. Pelo contrário, a ausência que agora dilacera dará lugar a uma presença tão forte, tão viva, que será como se a morte não tivesse existido.
Em 1993, vários amigos, muitos mesmo, saíram da escola, Alexey entre eles. O tal do “terceirão” ficou reduzido e o grêmio estudantil mais ainda. Sobraram eu e mais dois. Não fazíamos ideia do que fazer, então apenas preparamos a sucessão, uma nova eleição. Os vencedores tentaram naquele ano repetir os feitos do passado, tentando tirar os alunos da escola para participarem de uma manifestação contra a corrupção. Mas fizeram tudo errado, à revelia dos pais e da escola, forçando a saída. Pediram o apoio do “terceirão”, mas decidimos que não, não daquele jeito.
Lembro de assistir do andar superior do colégio, com os cotovelos apoiados no parapeito, boa parte dos alunos saindo da escola, deixando-a vazia. Lembro de me sentir sozinho. Escrevo dali, daquele parapeito, daquele olhar em direção ao vazio, maior do que eu gostaria que fosse e que só aumentou com o passar dos anos. É ali que estou. Sinto uma mão pousar no meu ombro, a primícia de um abraço. Uma voz serena, acolhedora, a dele, canta: “Estou bem acordado, não estou dormindo, oh não”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




