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O atacante Antony, da seleção brasileira, durante partida entre Brasil e Suíça na Copa de 2022.
O atacante Antony, da seleção brasileira, durante partida entre Brasil e Suíça na Copa de 2022.| Foto: José Mendez/EFE

E eu que estava no Pelourinho na estreia brasileira na Copa? Quem me conhece sabe quão surreal isso é. Mas, nos dias que vivemos, o que não parece surreal? Lá estava, juro. Não em meio ao Olodum, porém. Porque tudo tem limite. O hotel em que estava ficava no centro histórico de Salvador, próximo da famosa ladeira.

Chegamos de um passeio já com o jogo em andamento e corri para o quarto assistir, não sem antes me espantar com a fila na Delegacia de Proteção ao Turista, quase vizinha ao hotel, o que me fez lembrar de um poema do baiano Gregório de Matos, mais atual hoje do que no século 17, sobre a então chamada São Salvador da Bahia de Todos os Santos: “Se de dous ff composta / está a nossa Bahia, / errada a ortografia, / a grande dano está posta: / eu quero fazer aposta / e quero um tostão perder, / que isso a há de perverter, / se o furtar e o foder bem / não são os ff que tem / esta cidade ao meu ver”.

Como é belo esse nome: São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Aliás, “Todos os Santos” também está no nome do vilarejo em que Richarlison, nosso centroavante que dali instantes marcaria dois gols, morou no Espírito Santo quando bem criança, antes de os pais se separarem e ele morar com a mãe em Nova Venécia, no mesmo estado. Lá, ajudava trabalhando, vendendo picolé, na roça com o avô, num lava-car, convivendo com o crime e as drogas na porta de casa.

É surreal como o futebol, para o brasileiro, serve como redenção

Mais um de centenas, quando não milhares de exemplos de como o futebol salvou vidas. Como a de Antony, que nasceu e cresceu na favela Inferninho, em São Paulo, sobre a qual contou que “a 15 passos da porta da frente da nossa casa sempre havia traficantes vendendo aquelas paradas erradas, passando aquelas substâncias de mão em mão. O cheiro estava sempre do lado de fora da nossa janela. Na verdade, uma das primeiras lembranças que tenho é meu pai se levantando do sofá no domingo e pedindo para os traficantes se afastarem um pouco da nossa casa, nos deixarem em paz, porque os filhos dele estavam lá dentro, tentando assistir a um jogo de futebol”.

Vale ler todo o relato de Antony, piá bom: “Se você fala com a mídia, eles sempre perguntam sobre seus sonhos. A Champions League? A Copa do Mundo? A Bola de Ouro? Mas esses não são sonhos. São objetivos. Meu único sonho era tirar meus pais da favela. Não tinha plano B. Eu ia conseguir ou morrer tentando”. Conseguiu.

Terminada a partida, saímos procurar algum lugar para jantar. A fila na Delegacia permanecia, mas não o medo, nem a tristeza pelo que haviam perdido. A vitória, ainda mais com aquela pintura que foi o segundo gol, impedia qualquer sentimento que não fosse a alegria. Pelas ruas do Pelourinho, todas muito iluminadas pelo amarelo das camisas e os sorrisos sem fim, com uma batucada em cada esquina, parecia que tínhamos ganho a Copa já, não apenas um primeiro jogo.

É surreal como o futebol, para o brasileiro, serve como redenção. Redenção de toda miséria, especialmente moral, toda corrupção, inviabilidade, enfim, nossos ff’s todos. Redenção não apenas para os meninos que conseguem mudar de vida jogando bola, mas também para quem apenas torce e parece nada ganhar com vitórias e títulos, mas que, se for torcedor mesmo, sabe perfeitamente bem que ganha algo mais valioso do que tudo isso.

Nessas horas, que falta faz um Nelson Rodrigues a exagerar nossos dramas, como a contusão de Neymar, tratando como tragédia para vê-la se transformar na sublime redenção do brasileiro. Que escreveria ele vendo esse povo todo pelas ruas do Pelourinho, alegres e realizados, como se a Copa fosse nossa, sempre tivesse sido, jamais saído daqui?

Pergunta besta, já escreveu. Na crônica “O Escrete de Loucos”, depois do nosso bicampeonato em 62, imortalizou a nós todos que amamos a Seleção, a única que não precisa ser especificada pois paira acima de todas: “Ninguém compreenderá que foi a nossa qualidade humana que nos deu esta Copa tão alta, tão erguida, de fronte de ouro. E mais: – foi o mistério de nossos botecos, e a graça das nossas esquinas, e o soluço dos nossos cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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