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Mauro Pimentel/AFP
Mauro Pimentel/AFP| Foto:

Juro que gostaria, tentei até me forçar à comoção, mas não consegui. Só sentia o desalento familiar que de tão rotineiro já se tornou monótono. Enquanto assistia às timelines das redes sociais se inflamarem de tristeza falsa e indignação torta, eu mirava na TV as labaredas do incêndio no Museu Nacional com o mesmo manso amargor de dom Casmurro fitando o que não fez de toda sua vida.

Confesso me irritar com quem reduz o romance de Machado de Assis ao ciúme de Bentinho e à possível traição de Capitu. Isso está lá como os pontos e as vírgulas; como as folhas entre as capas. É do conteúdo, tem grande importância, mas não é o todo, muito menos a forma. Dom Casmurro é um romance de formação falhada. Dom Casmurro é o “não foi” de Bento Santiago no verso antológico de Manuel Bandeira e arquetípico do Brasil, aquele da vida inteira que poderia ter sido e não foi. E se Machado é nosso maior escritor e Dom Casmurro seu maior romance, então não deixa de ser também a história da nossa formação frustrada por nossa própria culpa.

Ao deitar ao papel as reminiscências de sua vida já sabemos que vida foi essa, quem Bentinho era no instante mesmo de começar a escrever: alguém que não foi. No capítulo II, ao explicar a razão da escrita do livro, conta que tal intento nasceu de mais um fracasso pessoal e demonstrou não ter nenhuma intenção de narrar sua história como quem busca por si mesmo, ou como se isso pudesse mudar algo na sua vida, fazer qualquer diferença no destino que considerava selado.

O fracasso anterior dentro do qual surgiu a inspiração para o livro foi o resultado da reconstrução de sua casa da infância em outro endereço com o fim evidente de “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

Esta lacuna é tudo. Ainda que reconstruamos o Museu Nacional, que o entupamos com réplicas de todos os objetos perdidos, passada a moda de revisitá-lo, quem aí não sabe que voltaríamos à situação da manhã do dia do incêndio? Não foi apenas má gestão, descaso, que deram causa ao incêndio, até porque isso é apenas sintoma da verdadeira causa: o fato de faltarmos nós mesmos, e esta lacuna é tudo. A realidade do museu incendiado, a devastação interior com a aparente sobrevivência das paredes exteriores, representa muito melhor quem somos e o que fazemos de nós mesmos. O incêndio não foi simbólico, foi consumador do que a ínfima visitação ao Museu já significava: falta nós mesmos, e esta lacuna é tudo.

No romance de Machado, ao chegar o momento do incêndio do ciúme pela suspeita da traição, o que segue vem embalado em um rancor gélido terrível que faz com que as mortes de todos os personagens se sucedam na narração não apenas como parte da história, mas como uma necessidade atual do narrador de que morressem de novo e mais uma vez, e todas as vezes, para que não o vissem nunca mais e assim ele também não precisasse nunca mais olhar para si. Daí porque importa tanto no livro os olhares, os olhos, o encarar, coisa que Bentinho foi e continuou sendo incapaz de fazer. Quando Capitu o confrontou sobre a realidade do seu sentimento e convicção, ele foi incapaz de dizer, não só para ela, mas para si. Nem mesmo a separação ele teve coragem de consumar, fazendo Capitu e o filho apenas ficarem longe dos seus olhos porque, perdoem o clichê, o que os olhos não veem o coração não sente.

E Bentinho tornado dom Casmurro é isso: um coração fechado que recusa sentir porque tudo o que sente é rancor dissimulado. Se suas reminiscências se tornassem confissão teria de encarar a dureza do seu coração e sua incapacidade de perdoar (se é que havia o que perdoar) por covardia de se encarar e à realidade que no fim das contas fica envolta em mistério, ambiguidade e dissimulação apenas e tão-somente por isso. Em suas palavras: “O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta”.

Se não aguenta tinta, que venham as chamas. Assistindo ao incêndio consumir o Museu Nacional sentia o mesmo rancor de dom Casmurro revisitando suas mortes próximas. Aí entendi melhor ele terminar a história com pressa, como quem precisasse se “livrar” daquilo e falar de outra coisa, como a história dos subúrbios cuja referência encerra o livro tentando encaminhar o olhar do leitor para outra coisa que não a realidade recém narrada e tratada como “resto”. O desejo inconfessado de que aquele fogo consumisse tudo do museu, acabasse com tudo, que nos deixasse sem nenhuma memória, nem história, sem resto, como se fosse uma justiça divina a nos punir pela falta de nós mesmos, e esta lacuna é tudo. Era assim que me sentia.

Estamos a “comemorar” o dia da nossa independência, mas do grito ao posto Ipiranga atual, que temos a celebrar? Pela aparência de comoção, talvez reconstruamos o palácio, talvez até consigamos preenchê-lo com mais consideração por nossa história, nossa memória. Um pouco de esperança não fará mal, mas me desculpem o pessimismo machadiano. Enquanto nos faltar nós mesmos, esta lacuna será tudo e tudo que fizermos será bater no portão do tempo perdido, como Carlos Drummond de Andrade nos cantou em seu poema:

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.

Bati segunda vez e mais outra e mais outra.

Resposta nenhuma.

A casa do tempo perdido está coberta de hera

pela metade; a outra metade são cinzas.

Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando

pela dor de chamar e não ser escutado.

Simplesmente bater. O eco devolve

minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.

A noite e o dia se confundem no esperar,

no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.

É o casarão vazio e condenado.

 

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