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Francisco Escorsim

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Cinema

A morte de Gene Hackman

Gene Hackman como o policial de "Operação França", filme que definiu um estilo
Gene Hackman como o policial de "Operação França", filme que definiu um gênero. (Foto: Divulgação)

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O sol do Novo México se despedia lentamente, dourando de nobreza as paredes da casa de Gene e Betsy Hackman.

No interior, o silêncio era acompanhado apenas pelo ruído branco do sistema de ar condicionado, uma presença constante e indiferente.

Betsy jazia imóvel no chão do banheiro, seu rosto sereno contrastando com a confusão reinante em torno, com um frasco de remédio aberto perto de sua mão e comprimidos espalhados por todos os lados.

Gene, sentado em sua poltrona favorita, olhava fixamente para a televisão desligada. Seus olhos, outrora vivazes e expressivos, vagavam sem foco, perdidos em um mundo que nem ele sabia qual era.

Os dias se arrastaram, cada um idêntico ao anterior, todos esquecidos

O Alzheimer havia roubado não apenas suas memórias, mas também o presente feito da ausência de sua esposa.

No canto do quarto, uma caixa forrada com cobertores abrigava Zinna, uma das cadelas do casal. Recém-saída de uma cirurgia, com seus olhos tristes seguia os movimentos erráticos de seu dono, gemendo baixinho, tentando alertá-lo da morte que residia na casa.

Os dias se arrastaram, cada um idêntico ao anterior, todos esquecidos. Gene vagava pela casa, às vezes chamando por Betsy, outras vezes simplesmente sentando-se e observando o vazio. Os remédios para o coração, tão cuidadosamente organizados por ela, permaneciam intocados.

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No sexto dia após a partida dela, o coração de Gene, há tanto tempo fragilizado e agora negligenciado, começou a falhar. Sentou-se em sua poltrona, a respiração cada vez mais difícil, sem compreender o que estava acontecendo.

Gene olhou para a foto de Betsy na sua mesa de cabeceira, ao lado da poltrona. Por um breve instante, um lampejo de reconhecimento brilhou em seus olhos. “Betsy?”, murmurou, estendendo a mão trêmula para a imagem.

A névoa que por tanto tempo obscureceu sua mente se dissipou e ele vislumbrou, pela porta entreaberta do banheiro, os pés da mulher. “Oh, Betsy”, exclamou, com a voz carregada de ternura e dor. “Eu... eu não sabia...”.

Betsy sorriu, acariciando o rosto do marido. Enquanto a luz os envolvia, Gene sentiu uma onda de memórias e arrependimentos. “Meus filhos...”, começou, mas Betsy o interrompeu gentilmente. “Está tudo bem, Gene. Tudo será renovado. Olhe...”.

Quando a noite esqueceu o dia, a casa dos Hackman descansava em um silêncio absoluto

Imagens de seus filhos, dos momentos de sua ausência na infância, antes tão torturantes, mas que agora se mostravam da perspectiva das crianças, da alegria vendo ele voltando para casa. Gene sentiu uma paz profunda, sublime, lapidar.

Quando a noite esqueceu o dia, a casa dos Hackman descansava em um silêncio absoluto. O corpo de Gene repousava na poltrona, a mão parecendo estendida em direção à fotografia.

Zinna, fraca e desidratada, permanecia fiel mesmo depois do fim. Não conseguia latir, tampouco gemia, não era mais necessário. Ao notar que o sorriso não sairia mais do rosto do dono, abanou o rabo pela última vez.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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