Passei a semana pensando em Pia de’ Tolomei e me lembrando dos meus mortos: pai, avôs, primos, tios, amigos. Pia é uma das personagens da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Aparece no Ante-Purgatório, lugar em que os arrependidos de última hora estão e, no caso dela, especificamente ao serem mortos violentamente por outro. Ao falar com Dante, ela disse: “recorda-te de mim que sou a Pia; / Siena me fez e me desfez Maremma; / bem sabe-o quem cativado me havia, / ao me esposar com o anel de sua gema”.
A personagem seria da família Tolomei, de Siena; foi casada com Nello della Pietra, indo morar em Maremma, num castelo. Nada mais se sabe a respeito. Supõe-se que o marido a trancou no castelo, mantendo-a em cativeiro até que decidiu matá-la, mandando uma serva empurrá-la de uma das janelas. Teria feito isso, segundo alguns, por ciúme; segundo outros, porque queria casar com uma amante.
Ninguém sabe ao certo, só temos o fato da morte e a imaginação de Dante, que instigou a imaginação não apenas de seus leitores pelos séculos, mas de outros artistas, como Gaetano Donizetti, que compôs uma ópera intitulada com o nome da personagem, e vários pintores que a retrataram, como Dante Gabriel Rosseti, Eliseo Sala, Stefano Ussi e Arturo Vigliardi. Em todos os quadros, Pia é retratada solitária, profundamente triste, com o olhar perdido. É impossível não vê-la como vítima.
Lembrar dos mortos já seria rezar por eles, o que faz da saudade não o lamento agridoce pela ausência, mas uma presença que se torna fonte de amor
Mas não foi bem assim que Dante a retratou. Pia só se arrependeu no último instante. Até então, era culpada de algo. De qual pecado? Não sabemos, mas não era “santa”. Seu arrependimento a salvou, mas não a ponto de levá-la direto para o Paraíso, nem mesmo ao Purgatório, já que Dante criou essa “antessala” preparatória para tanto.
Em todo o Ante-Purgatório, paga-se pelo tempo da demora. Se uma lagrimazinha de arrependimento sincero é capaz de nos salvar (lembre-se do Bom Ladrão), para Dante nem por isso se retira o peso do tempo de vida desperdiçado, que precisa ser purgado com uma nova espera. Essa espera faz o tempo dedicado a outras coisas em vida se tornar tempo devotado exclusivamente a prestar atenção na única coisa que interessa: salvar a própria alma, desejar o Céu, ansiando se unir a Deus, cantando para e por Ele, como o Miserere, presente no mesmo canto em que Pia está. No Ante-Purgatório ainda se experimenta o tempo, portanto, servindo como aprendizado de paciência, resiliência e persistência. Ou, para usar uma linguagem mais comum hoje em dia, do meio empresarial, você aprende a ter foco naquilo que é o mais importante. Dante foi o primeiro “coach” da história (desculpa, Dante, foi irresistível).
Mas no caso de Pia não era “apenas” isso. Além do arrependimento e espera, outra ação era necessária para se estar ali. Versos antes, uma das outras almas ali explicou a Dante e Virgílio que, além de contritos, também eram escusantes, “perdoadores”. Em italiano fica belo: “pentendo e perdonando”. Ou seja, além de se arrepender de seus pecados, também era preciso perdoar aquele que matou. Ou seja, Pia tinha perdoado o marido.
Nenhuma das pinturas retratou-a assim, porém, apenas mostrando aquela que sofria antes de se arrepender, preocupada demais com coisas certamente importantes, mas não a maior delas, a essencial. Daí porque, assim entendo, as razões de sua morte não mais importam ali. Quando tudo foi perdoado, o arrependimento aconteceu e a salvação se garantiu, o foco se torna apenas a consumação da salvação: chegar ao Paraíso o quanto antes.
Para tanto, é possível o tempo de permanência ser encurtado pela oração dos vivos. Não há alma ali que não peça a Dante isso. Pia, antes mesmo de dizer quem era, assim pediu: “‘Rogo-te, quando, retornado ao mundo, / repousado estarás da longa via’, / – seguiu um terceiro espírito ao segundo – / recorda-te de mim que sou a Pia”.
Sei que haveria trocentas coisas interessantes, talvez necessárias, certamente mais atuais para comentar esta semana, mas preferi dar atenção a isso: na recordação como forma de oração. Lembrar dos mortos já seria rezar por eles, o que faz da saudade não o lamento agridoce pela ausência, mas uma presença que se torna fonte de amor.
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