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A história de uma mulher que desafiou o Islã
| Foto: American Atheists/Creative Commons Attribution 3.0 Unported license/Wikimedia Commons

Por coincidência, ando a ler a autobiografia de Ayaan Hirsi Ali, uma somali muçulmana que se refugiou na Holanda e, aos poucos, passou a questionar sua fé. Diante do “não vale a pena ver de novo” acontecendo entre Israel e grupos terroristas, especialmente o Hamas, mais a pandemia de palpites não solicitados a respeito do assunto, achei por bem hoje me calar (alguém precisa dar o exemplo!) e ceder o espaço a Ayaan, com trechos deste seu livro, cujo título já diz tudo: Infiel – A história de uma mulher que desafiou o Islã:

“Mas foi naquele momento que o segundo avião atingiu o World Trade Center. A âncora [de TV] dizia que não podia ser um acidente – duas colisões seguidas tinham tudo para ser um ataque deliberado. Vimos várias vezes as horrendas imagens dos aviões se chocando com as torres. Fechei os olhos e pensei em somali: ‘Oh, Alá, que não sejam muçulmanos os que fizeram isso’.

Sabia que aquilo podia provocar um grave conflito mundial. Ao chegar em casa, disse a Ellen: ‘Haverá retaliação. Os americanos não são como os holandeses – não dirão: ‘Vamos conversar’. É a terceira guerra mundial’. Ellen me disse para não ficar tão nervosa. Naquela noite, porém, vimos outras imagens que me chocaram mais ainda. Na Holanda mesmo – em Ede, na cidade em que havia morado – a câmera exibia o que acontecia nas ruas logo após as torres terem sido destruídas: mostrava um grupo de crianças muçulmanas exultantes. Toda a Holanda ficou abalada, mas eu certamente estava mais chocada do que a maioria. Ellen continuou me dizendo: ‘São apenas crianças, isso é exagero, se as câmeras não estivessem lá isso não teria acontecido’. Mas, cá comigo, eu sabia que as câmeras só haviam captado uma parte da coisa. Se houvesse outras câmeras em outros bairros, também teriam visto aquilo.

“Não se tratava de uma facção de lunáticos movidos pelo ódio aos Estados Unidos e ao Ocidente. Eu sabia que uma vasta massa de maometanos veria nos ataques uma justa retaliação contra os infiéis inimigos do Islã.”

Ayaan Hirsi Ali, em seu livro "Infiel".

Na manhã seguinte aos ataques de 11 de Setembro, ao descer do trem para ir ao trabalho, encontrei Ruud Koole, o presidente do Partido Trabalhista. Ele tinha sido meu professor em Leiden. Cumprimentou-me chamando-me pelo prenome – não há muita hierarquia na Holanda – e, como o resto do mundo, nós nos pusemos a comentar o ataque às Torres Gêmeas. Ruud balançou a cabeça com tristeza: ‘É estranho, não? Todo mundo está convencido de que foram os muçulmanos’.

Não pude me conter. Pouco antes de chegarmos ao escritório, explodi: ‘Mas é claro que foram os muçulmanos. Questão de fé. Isso é o Islã’. Ele disse: ‘Ayaan, mesmo que tenham sido muçulmanos, trata-se de uma facção de lunáticos. Não faltam cristãos extremistas que interpretam a Bíblia ao pé da letra. A maioria dos maometanos não acredita nessas coisas. Dizer isso é difamar a segunda religião do mundo, uma religião civilizada e pacífica’.

Entrei no escritório pensando: ‘Essa gente precisa acordar’. Não era só Koole. A Holanda, aquele país bem-aventurado em que nada acontecia, estava, uma vez mais, tentando fingir que nada tinha acontecido. Os holandeses se esqueciam de que as pessoas podiam perfeitamente se erguer para travar uma guerra, destruir uma propriedade, prender, matar, impor leis de virtude em nome de Deus. Fazia séculos que não havia esse tipo de religião na Holanda.

Não se tratava de uma facção de lunáticos movidos pelo ódio aos Estados Unidos e ao Ocidente. Eu sabia que uma vasta massa de maometanos veria nos ataques uma justa retaliação contra os infiéis inimigos do Islã. Haviam declarado guerra em nome do islamismo, a minha religião, e agora eu tinha de escolher. De que lado ficar? Era impossível fugir a esse dilema. Isso é que era o Islã? Ele permitia e até preconizava semelhante carnificina? Eu, na qualidade de muçulmana, aprovava o ataque? E, caso não o aprovasse, o que pensar do Islã?

(...) Nos jornais, tudo era ‘Sim... mas’: sim, é terrível matar gente, mas. Muitos teorizavam candidamente, asseverando que a pobreza é que levava as pessoas ao terrorismo, que o colonialismo e o consumismo, a cultura pop e a decadência ocidental devoravam a cultura das pessoas e, assim, provocavam as carnificinas. Mas a África era o continente mais pobre, eu sabia, e a pobreza não gerava terrorismo; as pessoas verdadeiramente pobres não pensavam senão na refeição seguinte, e as mais intelectualizadas geralmente se revoltavam contra seus próprios governos, migravam para o Ocidente. Eu lia textos bombásticos de grupos antirracistas afirmando que uma onda terrível de islamofobia se abatera sobre a Holanda, que agora a atitude intimamente racista dos holandeses estava aflorando. Nenhuma dessas pseudointelectualizações tinha relação com a realidade.

(...) A maioria dos artigos que analisavam Bin Laden e o seu movimento apenas examinavam o sintoma: mais ou menos como estudar Lênin e Stálin sem levar em conta a obra de Karl Marx. O profeta Maomé era o guia moral de Bin Laden, e o que se devia avaliar era a orientação do profeta. Mas que fazer se eu não gostasse do resultado dessa análise?

“O profeta Maomé procurou legislar cada aspecto da vida. Ao aderir à sua noção do permitido e do proibido, nós, muçulmanos, renunciamos à liberdade de pensar e de agir por livre escolha.”

Ayaan Hirsi Ali, em seu livro "Infiel".

A CNN e a Al-Jazira divulgavam antigas entrevistas de Osama Bin Laden. Todas abundavam em justificativas para a guerra total aos Estados Unidos, que, segundo ele, haviam se unido aos judeus para empreender uma nova cruzada contra o Islã. Instalada em uma casa confortável na pitoresca Leiden, achei aquilo forçado, o discurso de um louco, mas as citações que Bin Laden fazia do Alcorão encontraram eco em meu cérebro: ‘Quando enfrentarmos os que descreem, golpeai-os no pescoço’. ‘Se não sairdes para lutar, Deus vos castigará severamente e outros porá em vosso lugar.’ ‘Onde quer que encontreis politeístas, matai-os, sujeitai-os, vencei-os, emboscai-os.’ ‘Ó fiéis, não tomeis por amigos os judeus nem os cristãos, que sejam aliados entre si. Mas aquele, dentre vós, que os tomar por amigos certamente será um deles.’ Bin Laden citava o hadith: ‘A Hora [do Juízo Final] não virá enquanto os muçulmanos não combaterem e matarem os judeus’.

Eu não queria, mas tive de fazê-lo: peguei o Alcorão e o hadith e comecei a folheá-los para ver. Foi horrível, pois sabia que ia encontrar as citações de Bin Laden e não queria questionar a palavra de Deus. Mas precisava perguntar: os ataques de 11 de Setembro provinham da verdadeira fé no verdadeiro Islã?

(...) Ao declarar o profeta infalível e proibir questioná-lo, nós, maometanos, instituímos uma tirania estática. O profeta Maomé procurou legislar cada aspecto da vida. Ao aderir à sua noção do permitido e do proibido, nós, muçulmanos, renunciamos à liberdade de pensar e de agir por livre escolha. Fixamos a vida moral de bilhões de seres humanos na mentalidade do deserto árabe do século 7.º. Não éramos apenas servos de Alá, éramos escravos. (...) Sem dúvida, o profeta nos ensinou muitas coisas boas. Eu achava espiritualmente atraente acreditar no além. Minha vida se enriqueceu com as injunções alcorânicas de ser compassivo e caridoso. (...) Mas eu já não podia deixar de ver o totalitarismo, o arcabouço puramente moral que constituía a minha religião. Ela regulava cada detalhe da vida e sujeitava o livre-arbítrio. O verdadeiro islamismo, como um rígido sistema de fé e estrutura moral, levava à crueldade. O ato desumano daqueles 19 sequestradores era o resultado lógico desse minucioso sistema de regulação do comportamento humano. Seu mundo se dividia em ‘nós’ e ‘eles’ – quem não aceitasse o Islã tinha que perecer.

(...) Mais ou menos nessa época, Abshir, o jovem imame da Somália, voltou a me procurar. Fazia alguns anos que morava na Suíça e acabara de passar por uma cirurgia cardíaca. Evidentemente, comentamos o 11 de Setembro. Eu lhe disse: ‘As afirmações de Bin Laden e sua gente, citando o Alcorão para justificar os ataques, estão mesmo escritas. Se o Alcorão é atemporal, também se aplica aos muçulmanos de hoje. Por isso se comportam como quem está em guerra com os infiéis. Não se trata apenas das batalhas de Uhud e de Badr no século 7.º’.

‘Tem razão’, concordou ele, ‘e estou tão confuso quanto você. Fui operado do coração, mas o que mais me dói é a cabeça’. Contou-me que começara a assistir às palestras sobre o Islã do filósofo islâmico francês Tarek Ramadan, neto de Hasan al-Banna, o fundador da Fraternidade Muçulmana. ‘Depois das palestras, acho que fiquei mais confuso ainda. Ele tem um discurso ambíguo. Diz coisas como: ‘O profeta declarou que o Islã é a paz, portanto é a paz’ ’.

Eu disse: ‘Sim, mas os versículos do Alcorão que falam em paz se aplicam unicamente à vida entre os muçulmanos. O profeta também disse: ‘Levai a guerra aos infiéis’. Quem são os infiéis e quem dá o sinal para empreender essa guerra?’ ‘Com certeza, a autoridade não há de ser Bin Laden’, disse Abshir. ‘É impossível guerrear contra todo hemisfério não controlado pelos muçulmanos.’ Disparei: ‘Abshir, afirmar que o Alcorão não é atemporal, é afirmar que ele não é sagrado, certo?’

“Minha vida se enriqueceu com as injunções alcorânicas de ser compassivo e caridoso. (...) Mas eu já não podia deixar de ver o totalitarismo, o arcabouço puramente moral que constituía a minha religião.”

Ayaan Hirsi Ali, em seu livro "Infiel".

‘O que você quer dizer com isso?’

‘Desculpe, mas acho que estou virando apóstata’, confessei. ‘Acho cada vez mais difícil ter fé.’ Abshir demorou a responder. ‘Essa coisa nos deixou a todos confusos. Você está muito estressada. É sempre difícil conservar a fé no contexto de um país não islâmico. Procure relaxar, descanse um pouco. Você precisa retomar o contato com a sua família, com os nossos parentes. Está muito isolada do osman mahamud. Ayaan, se você continuar pensando assim, corre o perigo de ir para o inferno’. Eu disse: ‘Mas, se questiono o caráter sagrado do Alcorão, é óbvio que também questiono a existência do céu e do inferno’.

‘Não pode ser.’

(...) Desejei-lhe muita sorte e força moral para achar a saída desse dilema. Ele era inteligente, compassivo e generoso, mas estava com medo. Medo do anjo que ia visitá-lo, na morte, para indagar sobre a sua lealdade ao profeta e a Alá. Medo de fracassar nessa prova e medo do fogo eterno que o aguardava. Despedimo-nos um tanto sem jeito. Eu sabia que não voltaríamos a conversar.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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