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Adrien Brody (no papel de Arthur Miller) e Ana de Armas (no papel de Marilyn Monroe) em cena de “Blonde”.
Adrien Brody (no papel de Arthur Miller) e Ana de Armas (no papel de Marilyn Monroe) em cena de “Blonde”.| Foto: Divulgação/Netflix

Fiquei a pensar em sepulcros caiados por causa do incômodo que muitos sentiram com o filme Blonde, baseado no livro de Joyce Carol Oates que romanceia a vida de Marilyn Monroe.

Não sei se a expressão ainda está na moda como a realidade que expressa, mas, como vivemos em um tempo em que temos de avisar que ao comentar sobre um filme daremos spoilers (como darei, se ainda não entendeu), melhor explicar: é quando alguém parece formoso por fora, mas está podre por dentro. Em linguagem bíblica: “Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23, 28).

Oscar Wilde, que domingo próximo faria aniversário, escreveu um romance sobre isso, dos mais didáticos, aliás: O Retrato de Dorian Gray. Na história, Dorian ganha um retrato pintado que registra sua realidade apodrecendo “por dentro”, enquanto por fora sempre aparece belo, jovem e inocente. No retrato, sua degradação moral e consequente deformação da personalidade ficam evidentes. Por óbvio, ele esconde o quadro dos demais.

Assistir a Blonde e lembrar de expressões como “direitos reprodutivos da mulher” ou “aborto é questão de saúde pública” é, no mesmo ato, descascar o caiado da linguagem com que se sepulta a realidade da iniquidade que o aborto é

Em Blonde, o sepulcro caiado não é Marylin Monroe, mas o show business que a apodrece por dentro. Não se mostra no filme por que e como Norma Jean, que fora abandonada na infância, decidiu entrar na chamada indústria do entretenimento, na qual foi ascendendo mais graças à sua beleza física do que ao talento; mas nem precisa, afinal, não é “natural” esse caminho desde então e mais ainda hoje em dia? Quantas crianças, hoje, não querem ser “YouTubers”, querendo dizer com isso não que tenham algo a expressar para o mundo, mas o desejo de ser famoso e, por consequência, rico? O que é um influencer sem obra a não ser um sepulcro caiado à espera do cadáver?

Todo o esteticismo do filme, que parece exagerado, fetichista, arbitrário, parecendo tomar a frente da própria história, que, por vezes, parece esquecida e mal contada, tem uma função crucial na forma da obra, pois é isso que faz com que pareça belo o que é grotesco, sem que o grotesco seja escondido pelo caiado do sepulcro.

Como, na história, Norma/Marylin é retratada mais como uma vítima, com uma interpretação perfeita de Ana de Armas retratando uma inocência quase pervertida, mas não completada, muito por uma ignorância autoimposta do que se passava em torno dela, é impossível culpá-la pelo próprio destino.

O fim trágico só é antecipável pelo espectador porque se faz presente o tempo todo, com o filme permitindo enxergar por dentro do belo caiado feito de fotografia, luz, enquadramento, figurino, o que apodrecia no sepulcro em que cada vez mais ela se instalava, incentivada, até forçada a entrar, pelo show business do qual, no fim das contas, foi tanto vítima quanto cúmplice.

Praticamente tudo poderia ser citado aqui como exemplo disso, mas nenhum com a mesma força dos abortos de Marylin. O único momento em que Norma Jean foi realmente feliz foi ao lado de Arthur Miller, mais especificamente quando ficou grávida. O filme chega a mostrar o feto com consciência, conversando com ela. O aborto involuntário, que ela imediatamente considerou como sendo uma espécie de castigo pelo anterior, voluntário, a que se submeteu, foi a “gota d’água” que a fez afundar no vício em drogas que a levou ao suicídio.

Não há como, no filme, defender os abortos, nenhum deles. Assisti-lo e lembrar de expressões como “direitos reprodutivos da mulher” ou “aborto é questão de saúde pública” é, no mesmo ato, descascar o caiado da linguagem com que se sepulta a realidade da iniquidade que o aborto é.

E é isso que me parece explicar o desprezo daqueles que, se não houvesse isso no filme, certamente o estariam elogiando como denunciador do machismo, do abuso sexual, apoiador do movimento #MeToo e coisas assim. Mas não. E não porque sabem que o filme é uma poderosa arma (provavelmente involuntária) contra o aborto por mostrá-lo pelo que é: um assassinato.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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