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Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo| Foto:

Ando a reler Hemingway. Seu livro póstumo, Paris é uma festa, voltou à moda em 2015, depois dos atentados na capital francesa. A obra, que vendia em torno de dez exemplares por dia, passou a ser comprado por mais de 500 pessoas, também por dia. Era possível encontrá-lo entre as velas e flores na porta do Bataclan, também empunhado por inúmeras pessoas durante os vários minutos de silêncio feitos por causa do acontecido. É compreensível, uma vez que o livro é considerado uma homenagem à cidade e parte da ideia de que ela é uma festa sempre móvel, sendo portanto impossível acabar com a alegria.

Mas, embora existisse e talvez ainda exista essa festa por lá, esse livro de algumas memórias do tempo em que viveu em Paris na década de 1920, em sua juventude, antes de se tornar o escritor famoso que se tornou, não é tão festivo assim. Ao contrário, a leitura mais atenta revela um fundo melancólico, um tanto angustiado, até desesperançado, mais condizente com um fim de festa. Quando sabemos que o livro, publicado depois da morte de Hemingway, teve por base cadernos com suas anotações feitas naquela época, mas que foram reescritas no fim da vida dele, entre 1956 e 1961, quando o escritor padecia de várias doenças e uma forte depressão que o torturaram a ponto de ele se suicidar, compreende-se esse contraste entre a alegria festiva da juventude e a tristeza nostálgica da velhice.

Como Hemingway nunca chegou a finalizar a obra, quem o fez foi sua viúva, publicando três anos depois da morte do escritor. É claro que isso daria confusão com herdeiros, ex-mulheres, várias acusações de que o material teria sido alterado, nem tudo teria sido colocado no livro e por aí vai. Em 2009, um de seus netos publicou uma nova versão do livro, uma “edição restaurada”, modificando algumas coisas, tirando outras e recebendo tantas críticas quanto a versão original. Como estou a reler a edição primeira, fiquei curioso com essa “restaurada” e saí a perambular pelos sebos na quarta-feira passada para ver se encontrava.

Caminhava pelo Centro de Curitiba, coisa que não fazia havia alguns meses, pensando no quanto Curitiba jamais foi, nem é uma festa, mas naquela quarta, 28 de março de 2018, seria palco para não uma, mas duas. Ao passar pela Praça Santos Andrade, testemunhei a montagem do palco para receber a festa de encerramento da caravana de um criminoso condenado a 12 anos e um mês de prisão. Salvo os banheiros químicos, em grande número, nem sinal dos militantes. Era cedo ainda, porém.

Não para a outra festa. Naquele instante, no aeroporto, Jair Bolsonaro era interrompido em seu discurso sobre um caminhão de som pela multidão gritando: “Eu vim de graça!” O corrupto Lula, bem antigamente, também levava gente que ia de graça vê-lo, mas naquela quarta, conforme noticiado no fim do evento pela equipe desta Gazeta do Povo que acompanhou a festinha paga sabe-se lá por quem, a grande maioria foi levada ao evento lulesco com ônibus fretados.

Estava no quarto sebo já, mas nada do livro, nem mesmo da edição primeira. O único de Hemingway que encontrei até ali foram edições de O Sol Também se Levanta, obra também escrita naquela época da alegria parisiense dos anos 1920. Mas, de novo, a alegria era mais aparência do que outra coisa. Junto com Paris é uma festa, essas obras autobiográficas dão um retrato da chamada “Geração Perdida” que lutou na Primeira Guerra Mundial e depois se viu perdida, sem saber para onde ir e o que fazer, salvo cair na gandaia, seja em Paris ou pelo mundo. O que se bebe na história é uma grandeza.

Nessa altura eu “subia” para os sebos da região do Largo da Ordem, passando pela rua da boemia, a São Francisco, com suas portas cerradas e paredes grafitadas, restos de comida e copos e garrafas vazias pelo chão há poucos meses restaurado e já degradado. Quase ninguém caminhava por ali, mas logo no início da rua um camburão da polícia estava parado com a sirene ligada. Do lado de fora, policiais e cães farejadores davam uma “geral” numa turma que estava sentada debaixo de uma marquise próxima à Praça de Bolso do Ciclista. Não sei o que carregavam em seus bolsos e mochilas, mas os cachorros pareciam saber sem muita dúvida.

A polícia teria trabalho mais tarde naquela região para não permitir o encontro e inevitável confronto entre os fãs do corrupto Lula e a turma que participaria dos atos organizados pelos movimentos de rua defensores da Operação Lava Jato que, por óbvio, protestariam contra a desfaçatez de um criminoso condenado estar brincando de campanha eleitoral, fingindo-se de perseguido. Como no dia anterior houve o suposto atentado à caravana do corrupto que serviu de marco do que até as pedras estão a gritar faz tempo, qual seja, que estamos em estado pré-revolucionário fomentado principalmente pelo desaforo de Lula, agora validado pela constrangedora atuação do STF em seu favor, passando seu habeas corpus à frente de dezenas de outros e lhe dando um salvo-conduto que, desconfio, nunca antes na história desse país alguém conseguiu antes de ter seu HC julgado, os nervos estavam à flor da pele em uma circunstância perfeita para explodir uma confusão das grandes. Mas Curitiba nunca decepciona. Na hora do possível confronto, uma chuva torrencial arrefeceu os ânimos e muita gente desistiu. Curitiba não é uma festa, não disse? Já o STF…

Mais dois sebos adiante e decidi voltar para casa. Encontrei apenas um exemplar de Paris é uma festa, mas não o que procurava. Retornei pelo caminho por onde vim. A São Francisco agora estava deserta, sem sinal de vida ou morte. Na Santos Andrade os trabalhos iam adiantados, o palco quase pronto, mas ainda sem sinal de maiores interessados e uma sensação de enfado, de fim de festa. Achei fosse por eu estar entre aqueles que pensam que bandido bom é bandido preso, não em cima de um palco, mas mesmo quem considera o corrupto um prodígio da política sentiu o mesmo.

Como trabalhei na hora do evento louvando o corrupto, só pude saber como foi depois. E o que era para ser cheio de som e fúria significou nada mesmo. A polícia manteve distantes os manifestantes que queriam jogar ovos em Lula e este, com a valentia típica dos covardes, entupiu o palco de crianças, com ele próprio segurando um bebê no colo. Quando você está diante de alguém que não tem escrúpulo de usar crianças e um bebê para se defender de uma ovada, não é preciso dizer mais nada sobre tão grandiosa figura.

Naquele instante eu falava a um grupo de leitura sobre Hemingway, sobre Paris é uma festa, sobre a geração perdida retratada ali e em O Sol Também Se Levanta, cujo título é emprestado do Eclesiastes, logo do seu prólogo, onde se diz: “Que proveito tira o homem de todo trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele se levanta”. No dia seguinte foi aniversário de Curitiba, cidade que se tornou um símbolo aglutinador de tanta coisa no Brasil atual, mas que depois dessas festas e afadigas todas debaixo do sol voltará a ser o que sempre foi, a terra que permanece não sendo uma festa.

Hemingway terminou Paris é uma festa dizendo: “Paris não tem fim, e as recordações das pessoas que lá tenham vivido são próprias, umas das outras. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela acabamos regressando”. Curitiba também é uma cidade que não tem fim, mas não sei dizer se para cá regressa quem daqui parte. Como sou daqueles que daqui nunca saí, apenas tenho o olhar de quem permanece e se pergunta: que proveito há nisso tudo?

Decidi revisitar O Sol Também se Levanta antes de dormir naquela quarta. Folheei em busca das minhas leituras anteriores marcadas nas páginas em que fiz anotações à margem ou sublinhados e estaquei diante de uma das passagens destacadas: “Talvez, com o tempo, acabamos por aprender algumas coisas, pouco importa o que seja. Tudo o que eu desejava era saber como viver. Talvez, aprendendo como viver, acabemos compreendendo o que há realmente no fundo de tudo isso”.

Amém.

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