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Foto: Josias Teófilo
Foto: Josias Teófilo| Foto:

O fenômeno da chamada “nova direita” não está mais tão dependente do mundo virtual da internet como o feto para o útero, embora ainda dependa da “mãe” para sobreviver fora dela. Talvez possamos datar o parto com as megamanifestações de 2013, mas antes disso não faltaram tentativas de encarar a realidade concreta da vida brasileira de CNPJs, aluguéis, fornecedores, investidores, sócios, parceiros, funcionários, dívidas a pagar, falências e por aí vai.

Algumas foram bem-sucedidas, outras não, mas creio não ser exagero afirmar que todas foram vencidas por um mal bem brasileiro: a impermanência. Não duraram muito tempo e as que ainda estão na ativa já tiveram de se reformular tanto que têm de ser consideradas mais como novas tentativas usando os mesmos nomes do que significando uma continuidade com o passado. Mas, para rascunharmos a história de algumas delas, o que farei na próxima coluna, é preciso antes retornar mais uma vez à década de 1990, o ponto de partida para quase tudo da história da “nova direita”.

Em 1996 surgiu a editora D’ávila, de Luiz Felipe D’ávila, personagem importante dessa história e que voltará a ser tratado em outros artigos. Hoje, interessa-nos apenas que foi o criador dessa editora que publicou duas revistas de suma importância para compreender a história brasileira mais recente: República, que era sobre política; e Bravo!, sobre cultura. Ambas foram bem sucedidas, sendo badaladas desde o primeiro número, com impacto político e cultural considerável.

A primeira delas a ser lançada foi República, no mesmo ano de 1996; todas suas edições podem ser lidas em seu site. Relendo-a hoje, impressiona sua pluralidade pelo contraste com a quase inexistência disso em revistas (em papel ou virtuais) atuais. Na época, não era nada de mais, mas para os padrões de hoje é de espantar. Imagine, por exemplo, Paulo Henrique Amorim e Diogo Mainardi colaborando atualmente para uma nova revista recém-criada. Difícil até de imaginar isso seja possível, que aceitassem, mas República começou exatamente assim, tendo como colunistas fixos Franklin Martins e Paulo Francis, por exemplo. Muitos outros colaboraram com a revista, tanto da “velha guarda” jornalística quanto da então nova, como Daniel Piza, já citado por aqui, mas, para a história da “nova direita”, talvez o mais relevante seja o jornalista Reinaldo Azevedo, que veio a assumir sua direção geral e a transformou, em 2002, na revista do site Primeira Leitura, mantendo o foco sobre política e economia. Reinaldo Azevedo dispensa apresentações, sendo outro personagem importante cujos livros serão resenhados por aqui mais à frente.

Primeira Leitura sempre foi acusada de ser a “revista do PSDB”, pois foi capitaneada até 2004 por Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações de Fernando Henrique Cardoso. A partir de 2004 Mendonça de Barros se retirou e a revista foi comandada por Reinaldo Azevedo e Rui Nogueira até o seu fim, em 2006, sem jamais deixar de receber a pecha de tucana, do que se defendeu até no aviso de encerramento de suas atividades: “Ao longo dos anos, foram muitas as especulações sobre os objetivos da revista e suas vinculações com este ou com aquele partido, notadamente o PSDB. Em outro ponto do debate, via-se na revista e no site a voz da ‘direita’, como se a palavra, por si mesma, já devesse provocar um susto. De forma serena, tranquila – e quem trabalhou aqui sabe disso –, enfrentamos as vagas de maledicência, de desconfiança, de descrédito”.

Muito haveria a dizer e analisar sobre República e Primeira Leitura, mas o foco aqui é cultural, não tanto político. Por enquanto, fica apenas o registro da sua existência, breve histórico e relação com alguns nomes importantes, merecendo destaque aqui o jornalista Wagner Carelli (foto), criador de República e Bravo!, das quais foi editor de redação durante bom tempo. E, quando conhecemos um pouco da história de Carelli, compreendemos de imediato a razão de ser da pluralidade de República e também de Bravo!.

Quando a editora D’ávila fechou, Carelli escreveu a respeito, contando um pouco da história. Um texto que pode ser lido no site Digestivo Cultural, aqui já tratado, no qual ele considera a editora como sua “mãe” profissional, enquanto o “pai” seria Mino Carta, “que me deu tudo que sei em jornalismo”. Tendo por pai um notório esquerdista e na mãe uma liberal típica, a criação de Carelli, República, só poderia nascer como espaço plural. Aliás, quando D’ávila chamou Carelli para criar República ele trabalhava na Carta Capital, tradicional revista da esquerda, criada e conduzida por Mino Carta.

A Bravo!, por sua vez, nasceu de dentro da República, dando independência e identidade própria à seção cultural que havia nesta, a parte que era intitulada “as políticas do prazer”. Surgiu em 1997, ano da morte de Paulo Francis. E foi um sucesso imediato, com a revista pautando as seções culturais de praticamente todo grande jornal diário do país. Ainda hoje guardo algumas edições da Bravo! em casa. Eram realmente belas e não ficaram datadas graficamente. E, assim como em República, a revista era plural, chegando a ter Bruno Tolentino como editor e ensaios de um Ferreira Gullar, na época de esquerda, Sergio Augusto, Fernando Monteiro, Olavo de Carvalho, dentre outros.

Sobre essa pluralidade, em entrevista à revista Continente em março de 2014, Carelli respondeu a algumas perguntas sobre isso e, a certa altura, afirmou: “O que me irrita é a própria atitude do intelectual, que é uma atitude defensiva, uma atitude de resistência e de culpar o outro. (…) É preciso ter uma certa maleabilidade, esse enrijecimento das posições é o que me aflige”. A maleabilidade não significa, é claro, descomprometimento com a verdade e ausência de convicções. Significa que ela só é possível quando a cultura, os valores, enfim, não são rebaixados à moda do dia, ao mero entretenimento, muito menos à ideologia. Significa, nas palavras do próprio Carelli em seu texto sobre o fim da editora D’ávila, que é preciso tratar a cultura “não como ‘entretenimento’, mas como sentido da vida, o que Aristóteles propunha como única possibilidade de satisfação do espírito humano. Pode parecer grandiloquente, mas esse foi o projeto da Bravo! e a razão de seu sucesso”.

Se a reabertura política do fim da década de 1980 começou a dar seus frutos no debate público nos anos 1990, com o surgimento de revistas como Carta Capital e República, sem contar as já tradicionais existentes no mercado, por outro lado a cultura, que havia sido asfixiada e prostituída, só começou a dar sinais de ter voltado à vida quando o surgimento de uma revista como a Bravo! demonstrou que havia público interessado. Muito interessado. Em seu texto, Carelli nos dá um retrato de como o jornalismo cultural era visto à época:

“O [Luis] Felipe [D’ávila] foi o primeiro e único publisher do país a querer fazer revista cultural. Ele tinha acabado de voltar da Europa, onde completara anos de uma formação da maior qualidade, e queria fazer revistas como as que ele gostava de ler lá fora ― aqui ele não tinha revista para ler. Eu sempre disse que, se eu levasse pra Abril naquela época o projeto de uma revista cultural como o da revista que acabamos fazendo ― 164 páginas em couché 90g, capa em couché 270g, quatro cores, abertura com uma seção altamente intelectualizada escrita pelos mais sofisticados pensadores culturais do país, sem falar de música popular, sem falar de televisão ―, os caras chamariam a segurança pra prender aquele batedor de carteiras. A Bravo! incomodou a Abril de uma forma impensada. Eles tinham lá aqueles programas de formação de profissionais ― como é mesmo o nome? ― que hoje toda grande empresa editorial tem, e no final do curso essa moçada sempre perguntava pros diretores da empresa: ‘Por que é que a Abril não tem uma revista como a Bravo!? Por que é que não saiu da Abril a ideia de lançá-la?’ Os diretores ficavam muito constrangidos e não sabiam o que responder. Ao final desses cursos, os jornalistas-to-be dividiam-se em grupos para criar diferentes revistas. E os orientadores diziam: ‘Só não vale revista cultural’. Era o que todo o mundo queria fazer.”

No mesmo ano de 1997 veio a público também a revista Cult, da editora Bregantini, mas que jamais atingiu a qualidade cultural da Bravo!. Pelo contrário, embora ainda esteja ativa, basta folheá-la para se constatar que na Cult a cultura é mais uma vitrine para militância ideológica do que outra coisa. A Bravo!, por sua vez, manteve-se fiel ao propósito de tratar a cultura como sentido da vida até pelo menos a saída de Carelli, em 2003. A editora D’ávila fechou um ano depois, vendendo a revista para a Abril, cujo tratamento editorial foi mais pelo viés do entretenimento. Em 2013 a revista foi encerrada, mas retornou à vida no fim de 2016, com proposta editorial muito mais próxima à Cult do que à Bravo! “raiz”.

Com o fim da Bravo!, em 2004, o Brasil só veria uma nova revista cultural de verdade em 2008, com o surgimento da Dicta&Contradicta, mas com diferenças consideráveis. Se não é possível compará-la com a excelência gráfica da Bravo!, por outro lado a extensão e profundidade dos ensaios publicados na Dicta tornaram a Bravo! mais próxima de um suplemento cultural de jornal do que uma revista cultural atemporal. O que a Bravo! resgatou com muito sucesso, a Dicta realizou com muito mais sentido de vida. Mas isso é assunto para a semana que vem.

Como última curiosidade: Wagner Carelli foi o entrevistador de Olavo de Carvalho no documentário O Jardim das Aflições, lançado em 2017. Pouquíssimos sabiam e sabem quem ele é. Eis mais uma razão para se contar essa história ainda muito recente da tal da “nova direita”. Até para constatarmos que, em se tratando de cultura, ela é mais um problema do que uma solução. Ou alguém acha que os valentes virtuais da direita, ao descobrirem que o entrevistador escolhido para o documentário sobre Olavo de Carvalho é um jornalista que tem Mino Carta como seu “pai” no jornalismo, iriam ter a maleabilidade para compreender a razão da escolha? Não; certamente teriam “uma atitude defensiva, uma atitude de resistência e de culpar o outro”, como disse Carelli, com quem termino esta coluna repetindo sua aflição, que também sinto: “esse enrijecimento das posições é o que me aflige”.

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