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Só existe “guerra cultural” quando a cultura deixou de ser cultivo do espírito para se tornar mero sistema de crenças e costumes. Uma guerra, como bem ensinou Rosenstock-Huessy, é a recusa de diálogo entre as partes em desacordo ou confronto. Mas a cultura, no seu sentido original e essencial de cultivo do espírito, de formação humana, exige diálogo permanente, especialmente com aqueles que nos antecederam e que dialogam conosco através de seu legado conservado, ainda que oralmente, entre as gerações. O que exige, portanto, a existência de homens que tenham, por sua vez, se tornado cultos o suficiente para conseguir transmitir esse legado adiante, seja porque souberam conservá-lo, seja por serem capazes de recuperá-lo quando perdido.

Uma “guerra cultural”, portanto, só pode existir quando esse sentido original e essencial de cultura foi perdido, senão por completo, ao menos o suficiente para parecer que cultura é só um “sistema de crenças e costumes”. Só quando a cultura é assim considerada que é possível haver “guerra cultural”, ou seja, com um sistema se impondo ou tentando se impor sobre outros num contexto sem diálogo real entre os sistemas possíveis existentes. É precisamente a situação brasileira de fim do século XX e início desse XXI. A “revolução cultural” feita pela esquerda seguindo o método de Gramsci foi justamente a vitória de um determinado sistema de crenças sobre outros. O imaginário brasileiro veio sendo formatado nesse sistema e quando isso acontece os limites do pensável e do crível estão definidos de antemão, como pressupostos a enquadrar e emoldurar qualquer pensamento e comportamento à luz de valores que o sujeito nem mesmo precisa ter consciência plena de que vive por eles.

A maior prova de que o imaginário do brasileiro em geral foi formatado assim é que a imensa maioria de nós sequer tem noção do sentido original e essencial de cultura. Você sabe o que é espírito, por exemplo? Não, não tem nada a ver com espiritismo e coisas assim. A maioria dos que hoje formam a chamada “nova direita”, uma vez “despertados” desse sistema, costumam ser incapazes de imaginar e pensar fora dele. Ou seja, ao descobrir que a cultura foi “esquerdizada”, ele passa então a achar que ela tem de ser “direitizada”, não que ele tem de correr atrás do prejuízo e começar a cultivar o espírito e a se formar como gente, no fim das contas. Daí surgem aberrações como “ideólogos conservadores”, um oximoro (googleie), pregando abertamente combate aos liberais, por exemplo, recusando qualquer diálogo.

Uma das consequências necessárias de uma cultura rebaixada a esse ponto é o desaparecimento lento e inexorável do que lhe pareça estranho ou ameaçador. E é claro que aqueles que defendem outro sistema ou tentam retomar a cultura em seu sentido original se tornam aliados “naturais” na reação a esse estado de coisas. É o que une, num primeiro momento, liberais e conservadores no mesmo “lado” dessa guerra. Nesse sentido, os think tanks liberais foram e são importantes, especialmente o pioneiro deles, o Instituto Liberal, tratado aqui na semana passada, cuja atuação durante décadas não conseguiu ir além do que publicar obras de autores do seu “sistema de crenças”, pouco ou nada conhecidos, muito menos publicados pelas grandes editoras. Não fosse pelo IL, Mises e Hayek sequer seriam conhecidos no Brasil antes do século XXI, e olhe lá. Atualmente, esse trabalho de disseminação das ideias liberais ganhou uma editora própria, a recém-lançada Editora LVM (Liberdade, Valores e Mercado), muito por iniciativa de Hélio Beltrão, um dos nomes principais do movimento liberal, fundador dos institutos Millenium e Mises Brasil, e que com a nova editora deixa bem claro seu objetivo:

Mas se as publicações liberais encontram seu lugar e seu sentido apenas dentro do seu “sistema de crenças” próprio que durante anos permaneceu quase na clandestinidade e hoje capitaneia a reação da “nova direita” contra a hegemonia esquerdista que vem se desfazendo, isso significa que não está havendo o resgate da cultura naquele sentido original e essencial. É indispensável, por óbvio, que as ideias e pensadores liberais sejam conhecidos, lidos, discutidos, mas o liberalismo tomado como “solução cultural” se torna tão adversário da cultura, aqui em sentido pleno, como os outros sistemas de crenças. Tornar-se um “liberal” não é o destino do ser humano. Basta entrar em questões que transcendem ou escapam da esfera desse “sistema de crenças” liberais para se constatar sua limitação a dar conta do todo da vida humana.

Cito o exemplo do aborto por ser um dos “temas de debate” mais reveladores disso. Aquele que construiu sua personalidade, seu senso de identidade, em torno do “ser liberal”, não terá alternativa senão defender a liberdade da mulher ao aborto, dando mil e uma justificativas para tomar como certeza absoluta que um embrião seria qualquer coisa, menos vida humana. Como pode a incerteza de algo ser humano se tornar impossibilidade de que não seja? Porque se essa possibilidade for aceita como tal, apenas como hipótese de que o embrião seja vida humana e portanto tão digna de ter preservada sua liberdade como a de sua mãe, o sujeito será obrigado a imaginar e pensar fora do seu sistema de crenças estabelecido. Instintivamente a recusará, com obstinação, sequer admitindo a possibilidade como possibilidade, pois se assim fizer seu sistema de crenças se desmonta inteiro e se verá atônito diante da incoerência de suas crenças, da inconsistência de suas certezas, da insuficiência da razão humana.

Haverá aí, é claro, um chamado para o cultivo do espírito, da cultura em sentido pleno. Mas quem está formatado a apenas se identificar com um determinado sistema de crenças e comportamentos pode perfeitamente ficar pulando de sistema em sistema sem jamais atender a esse chamado. Do mesmo jeito que se “libertou” do esquerdismo o sujeito pode se “libertar” do liberalismo, tratando todas as ideias e crenças liberais como trata as “esquerdistas”, que já nem merecem distinção interna, como sendo um erro ou mesmo um crime total, passando então a defender algum outro sistema que lhe pareça mais consistente, como o conservadorismo, que supostamente trataria a cultura no seu sentido primordial e essencial.

Mas também o conservadorismo, se tratado como um “sistema de crenças”, será tão ideológico, problemático e insuficiente quanto qualquer outra ideologia. E é claro que isso vem acontecendo no Brasil. Embora alguns conservadores tentem evitar que o conservadorismo se transforme em uma ideologia, a verdade é que a mera tentativa ou desejo de sistematizar suas ideias e princípios já é cobri-lo com um vestido de ideias. Tanto faz se esse vestido for de tecido britânico, americano ou mesmo brasileiro (bem mais raro no meio da “nova direita”). No mesmo instante em que se transforma o conservadorismo em um sistema de ideias, acontece o mesmo fechamento à realidade humana feito em outros sistemas. Basta ver, por exemplo, como muitos consideram a virtude da prudência, dando-lhe uma preponderância tamanha sobre outras virtudes para fundamentar esse sistema de ideias, que acabam agindo, na realidade, ao contrário do que apregoam. Ou seja, com imprudência.

Quer um bom exemplo do quanto vivemos num “sistema de crenças”, tanto faz qual seja o seu, e não em uma cultura digna, aberta ao diálogo real entre “sistemas” (não aquele dos ideólogos da tolerância que são intolerantes se a pauta do debate não for determinada por eles)? Pois se você leu o parágrafo sobre o aborto e saiu dele com a certeza de que sou um conservador e no parágrafo seguinte já não sabe bem como me definir e, portanto, julgar, é justamente por causa da “fôrma cultural” em que pensamos, nos movemos e somos. Só lhe restará me taxar de “isentão”, ou algo assim, voltando assim à segurança do seu “sistema de crenças” que não admite colocar em risco seus próprios fundamentos. Mas quem me acompanha por aqui sabe que, se estou mais próximo do conservadorismo do que do liberalismo, e não tenho pudor de me identificar como sendo “de direita” no atual contexto brasileiro, isso não me define. Aliás, não deveria definir ninguém que trate a cultura como cultivo do espírito e não um sistema fechado de crenças e costumes.

É nesse sentido que o surgimento de editoras de pequeno e médio porte que têm esse objetivo podem ser consideradas como conservadoras, mas não definidas como tal. Entre elas destaco, no que interessa para a história da “nova direita”, a É Realizações e Vide Editorial, merecendo menção editoras menores como a Resistência Cultural, Concreta, Danúbio e a novata Âynie. Mas esta coluna já ficou extensa demais, então trato delas na coluna da semana que vem.

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