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Eleição municipal de 2020 deixa lições para a disputa presidencial de 2022.
Praça dos Três Poderes, em Brasília.| Foto: Marcos Correa/PR

Tempos atrás vi um recorte no YouTube de uma entrevista para a CNN do advogado que chamam de “Kakay”, algo assim. O dito causídico explicava a festa ocorrida em sua residência depois da vitória do ex-presidiário Lula nas eleições passadas, na qual, dentre outros, estava o ministro Alexandre de Moraes.

O que me fez guardar na memória foi o momento em que o amigo dos imperadores disse entender que pessoas de fora de Brasília estranhassem confraternizações como essa, mas que não haveria nada de mais em o presidente do TSE ir à festa de comemoração do candidato vitorioso. Pelo visto, em Brasília a mulher de César não precisaria parecer honesta.

Só conheci a cidade dias atrás. Fiquei intrigado, porque gostei e não gostei ao mesmo tempo. Reconhecia alguma beleza, talvez mais pelo contraste da artificialidade com a luz e a imensidão do céu azul. Mas, ao mesmo tempo, havia algo de fantasmagórico, de mal-assombrado, como disse Clarice Lispector em sua crônica Nos primeiros começos de Brasília, na qual tem a frase que emprestei como título.

Tudo em Brasília é distante. Não me refiro ao deslocamento no espaço, falo de proximidade

Até quem nasceu e sempre morou lá parece não pertencer à cidade, mais estando do que sendo de Brasília. Ainda que tenha umas duas gerações lá nascidas, é estranho ainda parecer por ser, de fato, habitada. Rubem Braga, um de nossos maiores cronistas, implicava muito com Brasília por causa disso. Em Uma Cidade Feliz, perguntou: “Quantos anos passarão até que haja uma rede numa varanda, Senhor?” Não vi redes nas varandas, aliás.

Tudo em Brasília é distante. Não me refiro ao deslocamento no espaço, falo de proximidade. Clarice mesmo escreveu que lá não há onde esbarrar em alguém. Consequência da planificação, também da arquitetura modernista que sofre mais do que outras com a passagem do tempo. Boa parte da cidade parece mais antiga do que é, tendo envelhecido sem adquirir o charme de uma tradição, com o desgaste natural lhe dando mais a aparência de abandonada.

Some-se a isso as várias construções com partes enfurnadas debaixo da terra, como no prédio do Banco Central, do Palácio da Alvorada e das edificações do Congresso, parecendo não exatamente se proteger do calor do sol, mas se esconder da sua luz. E, ao visitar o mausoléu de JK, que parece mais uma cripta de vampiro, o mal-assombro fica inegável e, de certa forma, explicado.

Rubem Braga afirmou: “Eu compreendo o ideal dessa cidade, uma cidade feliz para uma possível humanidade melhor; mas em volta permanecerá um Brasil misterioso e triste que ela não entenderá, e seus homens esquecerão”. Essa última parte foi quase profética, mas o mistério e a tristeza não ficaram em volta. Não, o mistério e a tristeza ficaram dentro, isso é Brasília, com sua elite política esquecida do que não é Brasília. Daí por que quem não é de lá não os entenderia, como o tal do Kakay disse.

É o que me fez meditar sobre a frase que escolhi como título. Fiquei a pensar se não deveriam colocá-la nas placas de acesso e saída da capital, substituindo as tradicionais “Seja bem-vindo a Brasília” e “Volte sempre”. Faria mais sentido. Enfim, não sei se descobri o que me intrigou, se desvendei o mistério, mas acho que entendi perfeitamente o que Clarice quis dizer quando escreveu: “Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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