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Machado de Assis, nosso escritor mais consagrado, foi também um dos precursores da crítica literária no Brasil. Em 1879, publicou uma crítica intitulada “A Nova Geração”, na Revista Brasileira, tratando de autores novos nascidos no Nordeste brasileiro e que ganhavam destaque nacional. No artigo, Machado reconheceu o talento e a qualidade da produção de alguns, mas também apontou defeitos e problemas, como em Sílvio Romero, sobre quem escreveu:

“O autor dos Cantos do fim do século é um dos mais estudiosos representantes da geração nova; é laborioso e hábil. Os leitores desta Revista acompanham certamente com interesse as apreciações críticas espalhadas no estudo que, acerca da poesia popular no Brasil, está publicando o sr. Sílvio Romero. Os artigos de crítica parlamentar, dados há meses no Repórter, e atribuídos a este escritor, não eram todos justos, nem todos nem sempre variavam no mérito, mas continham algumas observações engenhosas e exatas. Faltava-lhes estilo, que é uma grande lacuna nos escritos do sr. Sílvio Romero; não me refiro às flores de ornamentação, à ginástica de palavras; refiro-me ao estilo, condição indispensável do escritor, indispensável à própria ciência – o estilo que ilumina as páginas de Renan e de Spencer, e que Wallace admira como uma das qualidades de Darwin. Não obstante essa lacuna, que o sr. Romero preencherá com o tempo, não obstante outros pontos acessíveis à crítica, os trabalhos citados são documentos louváveis de estudo e aplicação. Os Cantos do fim do século podem ser também documento de aplicação, mas não dão a conhecer um poeta; e para tudo dizer numa só palavra, o sr. Romero não possui a forma poética.”

Alguém aí achou que Machado foi “grosseiro”, “virulento” ou algo assim com Romero? Pois Romero não aceitou a crítica e esse artigo deu início a uma contenda literária que perdurou por décadas e, em grande medida, moldou muito da forma do debate intelectual no país desde então. Para termos uma ideia de como Romero reagiu, basta conferir a primeira edição de sua famosa História da Literatura Brasileira, de 1888. Machado já era mais do que conhecido, mas não mereceu de Romero nenhuma análise, apenas mera menção como “o autor de Iaiá Garcia”, sendo que já havia publicado Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro muito superior, em 1881. Pior ainda: embora Romero tenha publicado em 1897 uma crítica inteiramente dedicada a Machado em seu Machado de Assis, estudo comparativo de literatura brasileira, ainda assim não o incluiu em sua história da literatura brasileira, que teve uma segunda edição lançada em 1902, com subtítulo “melhorada pelo autor”, quando Machado já tinha publicado Quincas Borba e Dom Casmurro. Foi só na terceira edição que Machado foi incluído na obra de Silvio Romero, mas não por ele, já falecido, e sim por seu filho, Nelson Romero, responsável pela organização da edição.

Curioso para saber o que Romero disse sobre Machado naquele livro? Dentre várias coisas aproveitáveis, também se destaca o desprezo de Silvio Romero pela pessoa de Machado: “O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem rutilo, nem grandioso, nem eloquente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase”. Esse livro de Romero sobre Machado foi o estopim de nova polêmica, agora sobre a obra e a pessoa de Machado, colocando em polos antagônicos dois grandes críticos da época: o próprio Romero e José Veríssimo. A treta entre os dois foi grande e agressiva, com Romero publicando em 1909 um livreto cujo título já dá a medida da briga: Zeverissimações Ineptas da Crítica.

Machado de Assis jamais respondeu a Silvio Romero, nem saiu em defesa da sua obra ou pessoa. Talvez devesse. E àquela altura, passados 30 anos do artigo crítico que publicara, quem se lembraria que a crítica jamais fora pessoal? Mas voltemos àquele ano de 1879. Capistrano de Abreu, um de nossos maiores historiadores e que à época tinha publicado dois livros sobre escritores, Estudo sobre Raimundo da Rocha Lima e José de Alencar, escreveu sobre a crítica feita por Machado à nova geração, parabenizando “pelo ato de coragem, porque dizer francamente a sua opinião, sem descair na louvaminha, nem tombar na detração sistemática é muito raro neste meio pesado que nos vicia”. Esse escrito de Capistrano pode ser conferido em seu Ensaios e Estudos.

“Meio pesado que nos vicia”… Para termos uma ideia melhor disso, deste “meio pesado que nos vicia”, e que também serve de exemplo do que quero dizer sobre a forma do debate intelectual no Brasil, leiamos o que vai no prefácio da primeira edição de uma obra fundamental para se conhecer a história da intelectualidade brasileira. Trata-se da Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, publicada em 1895, e que foi usada durante mais de 70 anos no ensino de Português e Literatura na escola secundária brasileira. Manuel Bandeira e Pedro Nava, para ficar em dois grandes, citaram-na em suas memórias (aquele o fez em Itinerário de Passárgada e Crônicas da Província do Brasil), aliás. Eis o trecho que me interessa do prefácio: “Há-de notar-se que omitimos os escritores vivos; foi de propósito: assim cuidadosos evitamos o acrescer às dificuldades da escolha o receio de magoarmos vaidosos melindres. Irritabile genus…

Esta obra teve 42 edições ao todo, continuou sendo atualizada depois da morte dos autores, mas jamais incluiu escritores contemporâneos vivos. No prefácio da sexta edição, em 1912, aliás, disseram: “Tendo tomado, como firme propósito, a resolução de só incluir nesta coleção os excertos de escritores que além de outras consagrações também tivessem a da morte, nesta edição se hão de achar nomes e artigos de alguns contemporâneos distintíssimos e que infelizmente já não figuram entre os vivos”. Por conta disso, é somente na sétima edição, em 1915, que Silvio Romero aparece na antologia, por exemplo. A antologia seguiu consagrada aos mortos até 1915 durante mais de 30 anos. Azar de quem morreu depois disso e antes de 1945, ano em que voltou a ser atualizada, na sua 25.ª edição, já não mais por seus autores, consagrados pela morte também.

Mas qual seria o problema de ela não incluir escritores vivos à época de suas dezenas de edições? É óbvio que isso não retira o mérito da seleta realizada, certamente, mas diz muito sobre o que, na falta de melhor termo, chamam de “caráter nacional”; afinal, privilegiar “vaidosos melindres” à qualidade literária, e portanto à própria verdade, para não “magoar” alguns diz muito sobre quem assim fez e faz. E, já que esse critério de escolha permaneceu intocado por mais de 70 anos, sem sinal de que tenha sofrido qualquer crítica a esse respeito, não me parece exagero concluir que essa hierarquia de valores era e é comungada por muitos.

Também porque, segundo a doutora Marcia de Paula Gregorio Razzini, em sua tese de doutorado O espelho da nação: A Antologia Nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971): “(…) a Antologia Nacional era uma nova proposta de ensino, pois ela rearranjou os conteúdos tradicionais, apresentando-os por períodos cronológicos, e enfatizou a ‘Fase Contemporânea’, invertendo a ordem cronológica e separando a literatura brasileira da literatura portuguesa”. Ora, enfatizar a fase contemporânea deixando de citar autores contemporâneos vivos por receio de magoar alguns é claramente desvirtuar o próprio propósito da obra. Como bem apontou a autora da tese: “Assim, o critério de incluir só os autores mortos entre os contemporâneos para não magoar ‘vaidosos melindres’ demonstra que os compiladores tinham consciência de que suas escolhas extrapolavam os muros da escola quando se tratava, mesmo num livro didático, de eleger um corpus representativo da boa língua e da boa literatura nacional. Tratava-se de definir ou de instaurar a cultura nacional – ou ainda avalizar um certo recorte dela”.

Creio agora ser possível compreender melhor o que disse Capistrano sobre a crítica de Machado de Assis a Silvio Romero, parabenizando “pelo ato de coragem, porque dizer francamente a sua opinião, sem descair na louvaminha, nem tombar na detração sistemática, é muito raro neste meio pesado que nos vicia”. Silvio Romero também não pode ser acusado de covardia, embora tombando feio na detração sistemática, e por sua reação podemos também compreender melhor o receio dos “vaidosos melindres” dos autores da Antologia Nacional. Com isso, aquele “meio pesado que nos vicia” fica claro e dele jamais nos livramos; pelo contrário, o vício está entranhado: seja da pusilanimidade de não dizer a verdade para não melindrar vaidades, seja da temeridade destemperada recusando a verdade.

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