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Não existiria “nova direita” sem a internet. Mais especificamente, não existiria “nova direita” sem a criação e disseminação dos blogs. Os blogs são invenção, ou melhor, aprimoramento dentro dos sites que depois ganhou vida própria. No fim da década de 90 eram poucos, estimados em menos de 50 em 1999, segundo um estudo da Technorati, o State of Blogosphere, para quatro anos depois saltar para 3,5 milhões a 4 milhões de blogs.

Pode-se dizer que a história do surgimento das redes sociais, que teve seu embrião nas listas e fóruns de discussão dos anos 90, começou a ser gestada de fato com a blogosfera do início dos anos 2000, sendo parida pelo Orkut e Facebook em 2004 para depois engolir toda a internet muito rapidamente, com vários lugares do mundo em que as pessoas identificam internet com rede social, inclusive.

Quem viveu no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 e se sentia como um náufrago no mar de lixo que se tornou a cultura brasileira só tinha na internet uma válvula de escape dessa miséria. Ao procurar sinais de vida inteligente, não demorava muito a topar com blogs, na maioria escritos por jovens, em que duas coisas se destacavam: a liberdade e despretensão com que escreviam. Não escreviam para serem publicados em livro ou na imprensa. Não porque não quisessem, mas porque a possibilidade era ínfima demais para ser considerada. A comunidade de blogs era uma vila que só chamava a atenção de quem procurava por algo.  Não atraíam a atenção da mídia nem das editoras, portanto, muito embora não faltassem talentos dez vezes melhores em blogs do que se encontrava nas colunas de jornais e revistas.

Nessa época não fazia sentido algum falar em “nova direita”. Se a maioria dos melhores blogs era de autores que pareciam de direita, era muito mais por escaparem da hegemonia esquerdista do que por convicção pessoal. O que os blogs permitiam era um respiro cultural, espécies de oásis em que se podia falar sobre tudo um pouco, sem qualquer agenda nem pretensão de mudar o estado das coisas. Por isso mesmo o ambiente criado entre os blogueiros não era como o de um bunker em tempos de guerra, estava mais para a hora do recreio do colégio. Daí porque ali a ironia se tornou mais comum do que a sátira.

A sátira, como ensinava o crítico canadense Northrop Frye, é uma ironia militante. Ela exige objeto claro de ataque e humor ferino, o sarcasmo. Mas a ironia não militante não tem objeto de ataque, é apenas tática de defesa. A ironia não se volta contra ninguém em especial, apenas se defende contra quem vestir a carapuça. Entre os blogueiros, ela servia de seleção de amizades, de parcerias. Aqueles que entendiam a ironia dos outros passavam numa espécie de teste implícito e autossuficiente. A partir dali você era integrado ao círculo dos que comungavam não de interesses comuns, mas dos que se defendiam da estupidez e incultura generalizada.

Prova disso se encontra no livro Wunderblogs.com, lançado em 2004 pela editora Barracuda, que nada mais é do que uma coletânea de textos dos vários blogs que integravam o portal chamado Wunderblogs. O livro chegou a fazer algum barulho, com os autores sendo entrevistados pela Folha de São Paulo, e em cujas entrevistas se pode perceber claramente que a única coisa em comum entre todos eles era a ironia inteligente. Na própria orelha do livro, a editora conta que, ao encontrar com os autores, espantou-se com o fato de eles nunca terem compartilhado o mesmo espaço físico antes, mas terem um grau de intimidade impressionante e maior do que muita gente que se conhece desde criança. Além disso, a quantidade de “piadas internas” era imensa entre eles. Ironia defensiva contra os “de fora”, ironia comungada com os “de dentro”.

Quem quer que tente encontrar algo mais a dar unidade àquele time de blogueiros falhará. Politicamente, então, desista antes de começar. O escritor Daniel Pellizzari, por exemplo, que mantinha o blog Fail Better, era apolítico. Fábio Danesi Rossi, outro escritor e hoje roteirista de seriados da HBO, era um liberal defensor do aborto, enquanto vários outros autores eram conservadores cristãos contrários ao aborto. Ou seja, você até conseguirá encontrar semelhanças entre alguns, mas, entre todos ao mesmo tempo, só a ironia diante da incultura e estupidez reinante. A leitura das entrevistas à Folha já demonstra isso claramente. Eles nitidamente não se levavam a sério, muito menos o repórter que perguntava.

É claro que, aos olhos da militância de direita de hoje, os wunderblogs só podem servir de saco de pancadas. Justamente por parecer que se recusaram a tentar “fazer algo” mais do que “piadinhas”. Mas essa é uma crítica de moleques inconscientes da história cultural não apenas recente, mas do próprio momento histórico em que vivem. O simples fato de a sátira – tratada na coluna passada – e a ironia formarem o gênero e estilo comum de quem escapava da hegemonia cultural esquerdista do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 é prova da existência não apenas de uma tragédia cultural sem igual na história brasileira, mas também da ausência de possibilidades de ação para se fazer algo contra isso. Se hoje escrever em um perfil de internet tem condição de “viralizar” e fazer alguma diferença, naquela época um post muito lido de um blog era como o carro do sonho rodando pelo seu bairro. No máximo.

A característica central de uma época em que da tragédia só surgem reações de sátira e ironia é a do desaparecimento do heroico. Os heróis de verdade são substituídos por quem “tira sarro” dos inimigos, mas no fundo sabe estar e ser impotente para vencê-los. É uma época de derrota e de derrotados. Para entender isso melhor, voltemos a 1997, ao primeiro editorial daquele jornalzinho universitário, O Indivíduo, já tratado aqui nessa série de artigos e que se transformou em site e depois em blog, fazendo parte também dessa época aqui retratada. Nele se disse que seu propósito era “avisar aos ‘grandes’ – os professores, o corpo administrativo da PUC, gente do mundo cultural e formadores de opinião em geral – que eles estão sendo vigiados, que não podem achar que ficam impunes”. Entretanto, no parágrafo seguinte se disse: “Na verdade, não temos a menor pretensão de mudar nada”.

É claro que, se havia a pretensão de não deixar aqueles ficarem impunes, é porque se tinha, sim, a pretensão de mudar alguma coisa. O que existia, na verdade, era a desesperança, o descrédito de que algo fosse mudar de verdade. Essa desesperança, típica de derrotados, está soterrada pela ironia nos wunderblogs. Procure os textos selecionados para o livro relativos à época da eleição do Lula, em 2002, por exemplo. Foi como se não tivesse existido a eleição. Uma ou outra ironia e mais nada. Se alguma crítica cabe aos wunders por isso, não é a de não terem feito nada, mas de não terem tentado ser heróis ao estilo Gimli, da trilogia de O Senhor dos Anéis, na famosa cena anterior à batalha final em que ele diz: “Certeza de morte. Pequena chance de sucesso. O que estamos esperando?”

Estávamos esperando por heróis. Eu também tive blogs nessa época, vários, e desconfio que o que vivi vários dos wunders também viviam, ao menos os que estavam ali na faixa entre os 25 e 30 anos. De um lado, a constatação inegável de ter sido muito mal formado culturalmente e ter um mundo de coisas a corrigir e lacunas a preencher antes de sequer aventar a tentar fazer algo. Um dos wunders com que mais me identificava à época, e relendo o livro continuo me identificando, é Felipe Ortiz. Ao ler suas Impressões de Leitura da série Great Books Of The Western World encontro um jovem que tentava se formar e (re)formar sem maiores condições de fazer mais do que isso. Essas impressões de leitura, aliás, são das poucas coisas não irônicas no livro e que valem ser revisitadas e podem auxiliar muitos que queiram começar um processo de autoformação.

Por outro lado, a educação burguesa que todo jovem recebe – não apenas de classe média e alta, mas também da baixa – afasta a possibilidade do heroísmo para muito longe. A esse respeito, aliás, a ética burguesa prega que mais vale um covarde vivo que um corajoso morto. Some-se a isso a busca desesperada de todo brasileiro por segurança e estabilidade e temos uma circunstância que não apenas torna mais difícil o surgimento de heróis, mas quase sendo um milagre se vier a acontecer. Quase não temos registro disso na literatura nacional contemporânea (se é que existe ao menos um), mas temos ao menos um filme nacional que retrata muito bem o desaparecimento do heroico e sua quase impossibilidade de surgimento. Refiro-me ao filme Cidade de Deus, em que o personagem Mané Galinha até tenta ser um herói, mas fracassa. E, no fim, ser herói no Brasil é ficar como na antológica cena do filme em que se correr a polícia pega, se ficar o tráfico elimina. Vide outro herói involuntário dos cinemas, o capitão Nascimento, que foi demolido no segundo filme justamente no seu significado heroico.

Por isso não me parece justa a crítica de que os wunders só faziam “piadinha” quando não dava mesmo para fazer muito mais coisa. No mínimo, o livro é um registro histórico dos mais importantes para entendermos não apenas como vieram a surgir possibilidades de ação maiores do que a ironia impotente ou a sátira humilhante – veremos nos próximos capítulos –, mas principalmente para constatarmos que o trabalho de reforma cultural está muito, mas muito longe de dar frutos. Aliás, uma das coisas que os wunders nos ajudam a entender da nossa história é o abismo que há por ser suplantado para que isso aconteça.

Para mim, ninguém registrou isso melhor entre eles do que o blogueiro Ruy Goiaba, pseudônimo do jornalista Rogério Ortega. Em um de seus primeiros posts no seu blog, ele propunha a fusão de Crime e Castigo, de Dostoievski, com o filme Loverboy, Garoto de Programa, em que Raskolnikov seria um michê existencialista. Outra sugestão, unir Ferris Bueller e Schopenhauer para sair um Filosofando Adoidado (Arthur Schopenhauer’s Day Off). A ironia divertida desses posts não era feita para desmerecer Dostoievski ou Schopenhauer, mas demonstrava ser impossível querer saltar para a alta-cultura desprezando a própria miséria cultural em torno. Não dá. Como ensinou Ortega y Gasset, as circunstâncias  em que vivemos precisam ser salvas. Não que Ruy estivesse a salvá-las, mas seu talento humorístico as retratava com muito acerto. E prova maior de que o caminho não poderia ser saltar da miséria para os céus da alta cultura quem deu, anos depois, foi o filósofo Olavo de Carvalho, ao criar um personagem para seu programa de rádio virtual misturando Sócrates com Alborghetti que foi um tremendo sucesso e despertou inúmeras inteligências país afora. Ruy Goiaba tinha razão. A única diferença é que a ironia é impotente naquilo em que a sátira é mortífera.

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