• Carregando...
Foto: Cau Guebo/Raw Image/Estadão Conteúdo
Foto: Cau Guebo/Raw Image/Estadão Conteúdo| Foto:

Em Versalhes, subúrbio de Paris, no ano de 2010, moravam num mesmo apartamento 13 pessoas. Sim, você leu direito: 13 pessoas. Entre eles, um bebê de 4 meses. Numa noite qualquer, a criança chorou e o pai levantou para preparar a mamadeira. Ele estava totalmente nu. Sua esposa acordou logo que ele saiu da cama, tomando um susto imenso, confundindo o marido com a figura de um diabo e desandou a gritar. O homem não teve tempo para nada. Sua própria irmã veio em socorro da cunhada e esfaqueou a mão do irmão. Em seguida, os outros moradores apareceram pulando em cima do “diabo” e o arremessaram para fora de casa. O homem (totalmente nu, não esqueça) voltou correndo para o apartamento e, quando entrou, continuou sem ser reconhecido, com todos ainda achando se tratar de um diabo, o que os fez entrar em pânico e pular pela janela do segundo andar. A história seria cômica não tivesse terminado de forma trágica: sete dos moradores sofreram traumatismos múltiplos e o bebê morreu. A polícia não encontrou nenhuma evidência de que tivesse ocorrido consumo de drogas ou álcool no apartamento, tampouco pistas de possível ritual religioso que justificasse a “vinda” de um diabo. A hipótese mais verossímil a explicar o ocorrido é que se tratou de histeria coletiva.

Continuemos na França, agora em Estrasburgo. O ano é 1518 e um belo ou feio dia Frau Troffea, moradora da cidade, saiu à rua para dançar sem motivo aparente. Sozinha e sem música. E assim ficou por uns seis dias seguidos, contagiando quem a visse. No fim de uma semana, 34 pessoas estavam dançando ao lado dela, e em um mês esse número chegou a 400 pessoas. Sério, aconteceu mesmo. Isso durou quatro meses ao todo e muitos morreram de tanto dançar. A maioria de exaustão, outras por ataque cardíaco. Um jornal da época noticiou que chegavam a morrer 15 pessoas por dia. O “surto” de dança parou como começou, sem razão aparente. A hipótese mais verossímil a explicar o ocorrido é que se tratou de histeria coletiva.

Outro fato histórico similar, agora ocorrido na Tanzânia, no continente africano. Em 30 de janeiro de 1962, três meninas começaram a rir na escola depois de escutarem uma piada, logo contagiando outras 95 das 159 alunas. A crise de riso foi tão grave que a escola fechou as portas para evitar tumultos e só reabriu em 21 de maio, sendo novamente fechada um mês depois, pois os ataques de riso continuavam acontecendo e duravam horas. Houve casos em que os sintomas duraram 16 dias. Para piorar, a epidemia de riso escapou da escola contaminando outras 14, além de moradores de outras cidades. Há registros de mais de mil pessoas atingidas pelos ataques de riso que só vieram a parar totalmente dois anos e meio depois, em junho de 1964, quando as cidades atacadas foram colocadas sob quarentena. Cômico, mas também assustador. A hipótese mais verossímil a explicar o ocorrido é que se tratou de histeria coletiva.

Um dos casos de histeria coletiva mais famosos ocorreu na véspera do Halloween de 1938, nos EUA. Embora tenha sido anunciado nos jornais durante a semana e também no início da transmissão pela rádio CBS, às 20 horas, que se tratava de uma peça de radioteatro dramatizando o livro famoso de H. G. Wells A Guerra dos Mundos, diversos ouvintes entraram em pânico em várias partes do país acreditando que estava acontecendo mesmo uma invasão alienígena na cidade de Grover’s Mill, em Nova Jersey. Isso aconteceu porque o genial Orson Welles, ainda pouco conhecido, que foi quem adaptou a obra, produziu e dirigiu a peça, optou por narrá-la como se fosse um noticiário informando a invasão. Como muitos pegaram a transmissão já iniciada e era uma época em que se confiava na imprensa, acreditaram piamente que estava ocorrendo mesmo uma guerra. Calcula-se que meio milhão de pessoas entrou em pânico, sobrecarregando linhas telefônicas, aglomerando-se no meio das ruas e, especialmente em Nova Jersey – por motivos óbvios –, houve fuga em massa das cidades, congestionando estradas. De nada adiantava as pessoas que sabiam do que se tratava tentar esclarecer os fatos. Quando a histeria é coletiva é difícil contê-la.

A característica básica de toda histeria está em o sujeito não sentir o que percebe, mas o que imagina – como no caso citado da esposa que imaginou ver um diabo em vez do marido. Mas quando a histeria é coletiva o ponto essencial é outro, é o contágio histérico. Ou seja, não importa se o sujeito da origem do surto está histérico ou não, o que importa é o quão contagiante é sua reação. Os demais moradores daquele apartamento em Paris nem pararam para ver se era um diabo ali entre eles, bastou a reação convincente daquela mulher.

Essas coisas costumam ser irresistíveis por conta do funcionamento da imaginação humana. Ela sempre age por combinação ou associação de imagens e, uma vez despertada por um desejo ou temor muito intenso, ela se parece com um cavalo desembestado difícil de conter. Por exemplo, quando uma risada nos contagia, ainda que não tenhamos achado graça nenhuma da piada que a causou, é nossa imaginação desejando rir gostosamente como a que escuta. É o que ocorreu no caso africano e também no caso da dança na França, bem como no caso do pânico causado pela peça de radioteatro nos EUA. Ainda que tivesse quem dissesse que era tudo ficção, o pânico alheio era forte demais para ser “mentira” e a imaginação desembestou procurando proteção.

Uma vez que a imaginação toma a frente, puxada pela emoção forte que a desembestou, ela só para quando o ciclo temporal dessa emoção se esgota ou se uma emoção contrária for causada com força equivalente para “chocar” o sujeito e acordá-lo do surto. Daí porque em muitos filmes vemos pessoas em surto histérico sendo acordadas com tapas na cara e coisas assim. Há um episódio muito bom do seriado House – já encerrado – que ilustra isso muito bem. É o 18.º da terceira temporada. Num avião há um doente e os demais passageiros começam a ter sintomas idênticos. Assista a um trecho breve desse episódio e retorno em seguida (há legenda disponível nas configurações):

O que House fez nessa cena é o que em medicina se conhece por “efeito nocebo”. Se por um lado é razoavelmente conhecido o efeito placebo – sugestão de melhora induzida na pessoa por ingerir um suposto “remédio” –, por outro o efeito nocebo é pouco falado e estudado. Trata-se do inverso, de sugestionar sintomas de doença ou uma piora nesses sintomas sem que isso esteja acontecendo de fato. É o que ocorreu na cena, quando o médico começou a descrever possíveis sintomas de uma meningite bacteriana, sendo alguns inexistentes se as pessoas estivessem com essa doença. Ao prender a atenção de todos e mostrar como estavam sentindo o que não podiam estar sentindo, House evitou a histeria coletiva que estava se formando, contendo a imaginação em pânico.

Na área da saúde isso é mais comum do que se pensa, aliás. Ou será possível que de repente milhares e milhares de crianças sofram de hiperatividade? Ou que a chamada Síndrome do Pânico tenha se tornado tão comum quando antes mal se ouvia falar dela? Não estou a dizer que essas coisas não existam. Existem, mas aposto que muitos casos são contágios de sintomas, mais do que consequências de causas reais. Sintomas que precisam ser tratados, claro, mas que muitas vezes não têm relação com alguma causa, que desconfio não seja descoberta simplesmente porque não existe. Como disse House, sua mente manda no seu corpo e, se ela imagina que está doente, o corpo adoece mesmo.

Ninguém está imune em meio a uma histeria coletiva, ainda que nem pareça que ela esteja em pleno acontecer. É o que vivemos no país atualmente, quando recuamos um pouco para observar nossas reações em relação a uma série de fatos de toda ordem. Se tomarmos as descobertas da Operação Lava Jato como origem dessa histeria, é possível enxergar claramente seus sintomas. De um lado, a indignação justa contra o que se revelava gerou uma reação histérica típica de “caça às bruxas” – como, aliás, ocorreu no caso famoso das bruxas de Salém – em que a mera citação de alguém por algum delator bastava para condenação. Quantos até hoje não entendem por que Lula ainda não foi preso amanhã? Não há tempo para esperar o tempo do Judiciário, é preciso prender já, o quanto antes. Isso é histeria. De outro lado, a reação foi diversa, mas igualmente histérica. Quantos até hoje não insistem na narrativa de que tudo se trata de um grande golpe? Com base em quê, quando há um continente de provas e indícios do maior esquema de corrupção da história? E os que acham que Lula é inocente, mesmo tendo sei lá quantas provas documentais, testemunhais e delatores falando a mesma coisa? Todos estão mentindo, menos Lula?

Perceba, leitor sensato, que o que falo não tem nada a ver com a realidade da Lava Jato; refiro-me às reações geradas menos pelo que se revelou do que por contágio de outras reações. A histeria pode ser um falseamento completo da realidade, como acontece no caso de muitos esquerdistas cúmplices morais desses esquemas de corrupção ao acharem se tratar de golpe; como também pode ser uma reação exagerada, quase insana, diante de um fato real, como acontece no caso de muitos direitistas que exigem Lula preso amanhã ou imploram por uma intervenção militar mágica – mágica porque só na imaginação histérica isso seria uma solução.

Essa reação histérica prossegue agora nos casos das exposições sexuais que se dizem artísticas, embora pareçam nada ter a ver com a Lava Jato. Ainda que a preocupação primária seja legítima de ambos os lados – liberdade de expressão e proteção à infância –, as reações em muitos casos estão descoladas dessas supostas razões, sendo muito mais reações ao grupo a que se sentem pertencentes desde a aparente divisão da sociedade brasileira pós-Lava Jato. De um lado, muitos pretensos defensores da liberdade de expressão se recusam a considerar as crianças atingidas pelas obras criticadas e criaram uma realidade falsa na qual se trataria de uma “censura ultraconservadora” como tática para distrair o povo dos “golpistas” no poder, o que só torna mais evidente se tratar da continuidade daquela reação histérica às consequências da Operação Lava Jato. Ou seja, reagem a quem está criticando, não ao objeto da crítica feita. De outro lado, temos muitos pretensos protetores de crianças que não estão nem aí para as crianças que foram a essas exposições, pois compartilharam sem piedade os vídeos em que elas aparecem, potencializando os danos causados a elas, o que só demonstra que estão reagindo contaminados pela indignação alheia, não em função de valores que, se existentes, já se transformaram em ideologia – o que é o mesmo que pervertê-los, que é o que ocorre quando agimos como se os fins justificassem os meios.

Note como em ambos os casos se trata de uma reação histérica de pânico. No fundo, ambos os grupos têm o mesmo temor do futuro, dando-se as mãos para perguntar: “onde iremos parar?” A pergunta é válida e necessária, mas tem uma outra que creio deva ser respondida antes, de maneira individual: e se eu estiver reagindo somente à reação do grupo a que pertenço, fingindo ou exagerando indignação para “casar” com a do meu grupo? Será que, tal como os passageiros naquele voo do dr. House, não estamos todos ficando histéricos por contaminação? Não faço ideia de onde iremos parar, mas não há dúvida do que dirão os homens do futuro quando conhecerem esse capítulo da história: a hipótese mais verossímil a explicar o ocorrido é que se tratou de histeria coletiva.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]