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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Justiça de verdade

O juiz que não temos

frank caprio
O juiz Frank Caprio, famoso pelos vídeos de "Caught in Providence", morreu aos 88 anos. (Foto: StephanieRPereira/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license)

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Em 2017, um vídeo de um julgamento de infração de trânsito viralizou nas redes sociais. Tratava-se de uma mulher com várias multas, somando um valor de algumas centenas de dólares. Ao tentar se defender, tudo que conseguiu dizer é que passava por um ano difícil, especialmente depois do seu filho ter sido assassinado. “Me sinto tão vazia e perdida...”

O caso ocorreu em Providence, capital do estado de Rhode Island, nos Estados Unidos. O juiz era Frank Caprio e o vídeo só existiu por ser parte de um programa de tevê chamado Caught In Providence, que começou em 1988, na televisão local. Com alguns intervalos, chegou a ser exibido nacionalmente nos EUA até que, com o surgimento das redes sociais, foi disponibilizado no YouTube, tornando o juiz uma celebridade internacional. Mas não pelos casos, todos sem maior relevância, e sim por sua compaixão.

Frank Caprio se interessava pelas vidas e circunstâncias de cada acusado, humanizando não apenas os julgamentos, mas todos que os assistiam e ainda podem assistir no YouTube. Em entrevistas, costumava dizer: “Penso que devo levar em consideração se alguém está doente, se sua mãe morreu, se tem filhos passando fome. Não uso um distintivo sob minha toga, uso um coração sob minha toga”. No caso da mãe enlutada, o coração de Frank cancelou todas as multas.

Frank Caprio se interessava pelas vidas e circunstâncias de cada acusado, humanizando não apenas os julgamentos, mas todos que os assistiam e ainda podem assistir no YouTube

O produtor do programa era o irmão do juiz, Joe Caprio, que viu a forma compassiva e bem humorada de Frank e concluiu que documentar seu dia a dia no tribunal de trânsito poderia render um bom programa. Acertou em cheio, embora o sucesso tenha demorado mais de 20 anos para acontecer.

É claro que nosso lado cínico, que costumamos revestir de uma aparência de prudência ou sagacidade, rapidamente nos faz duvidar, desconfiando se tudo não seria uma grande encenação, um teatro. Mas não era. Os casos eram reais, os acusados davam autorização para serem gravados, e nem uma pessoa sequer diz que o juiz agia de forma diferente com aqueles que não eram filmados.

Em uma entrevista ao canal CBS, cerca de um ano atrás, o entrevistador lhe perguntou como ele decidia quem merecia misericórdia no seu tribunal. Sua resposta: “Todo mundo”. E posso escutar daqui nosso cinismo pensando como gêmeos siameses, que os acusados, sabendo da compaixão do juiz, encenavam tragédias para comovê-lo. Mas ele tinha consciência disso, de que alguns tentavam enganar e de que não era fácil discernir os mentirosos dos sinceros. Provavelmente, alguns malandros escaparam da Justiça, mas, como ele mesmo dizia: “Prefiro dar o benefício da dúvida”.

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Benefício que nosso cinismo não costuma dar. Aposto que ainda insiste, agora questionando o valor dessa compaixão, já que não se tratava de grandes infrações, sendo “fácil” bancar o misericordioso quando o crime não seria grave. Mas, quando ouvimos a resposta de Frank à pergunta sobre o que seria a justiça, creio que todo cinismo se cala. Depois de responder o óbvio, que a justiça é dar a cada um conforme o seu mérito e que seu dever é levar a justiça às pessoas, completou:

“Então, sou um juiz municipal lidando com ofensas de menor potencial ofensivo, e o que esses ofensores realmente merecem? Em alguns casos há previsão de prisão, mas, quando vejo alguém multado em US$ 180 por ter passado um sinal vermelho e eles vão para casa de noite sem ter condição de levar comida ou sem condição de pagar o aluguel ou a escola do filho... isso é justiça?”

Um juiz de verdade não é um justiceiro embriagado da própria arrogância, mas um homem justo que sabe ser, mais ainda, misericordioso

Caprio se tornou juiz em 1985 e permaneceu ativo até 2023, quando se aposentou e passou a enfrentar um câncer de pâncreas, a mesma doença que causou a morte de seu pai, seu grande modelo e inspiração. O pai de Frank era motorista de uma grande companhia de distribuição de leite. Pelas regras da companhia, se a pessoa deixasse de pagar por duas semanas, era para o motorista parar de entregar o leite. Mas, se a família inadimplente tinha crianças, o pai de Frank continuava entregando, e muitas vezes pagava do seu bolso para a companhia.

Frank Caprio imitou seu pai até o fim, não vencendo a doença, infelizmente falecendo no último dia 20 de agosto, aos 88 anos. Era um católico devoto que, em 2024, fez uma peregrinação a Lourdes, na França, cantando a Ave Maria ao chegar à gruta famosa. Quando soube do câncer, pediu que rezassem por ele, dizendo: “Tenho uma fé profunda e duradoura na Igreja Católica, em Jesus e no poder da oração”. Um dia antes de falecer, postou um vídeo pedindo que se lembrassem de rezar por ele.

Este texto é uma forma de atender ao seu pedido, mas também de lembrar a nós, brasileiros, que um juiz de verdade não é um justiceiro embriagado da própria arrogância, mas um homem justo que sabe ser, mais ainda, misericordioso. Como Frank Caprio mesmo dizia: “Prefiro exagerar na compaixão do que exagerar na punição”. Amém.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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