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O cantor Frank Sinatra, em foto de 1957.
O cantor Frank Sinatra, em foto de 1957.| Foto: DownBeat/Wikimedia Commons/Domínio público

“Chego em casa à noite e o apartamento está todo escuro. Eu grito ‘Frank!’ e ele não responde. Entro na sala e é como um velório. Há três fotos de Ava e as únicas luzes estão sobre elas. Sentado em frente está Frank com uma garrafa de conhaque. Eu digo: ‘Frank, controle-se’. Ele responde: ‘Vá embora. Me deixe em paz’. Então passa a noite toda andando de um lado para o outro e diz: ‘Não consigo dormir, não consigo dormir’. Às quatro horas da manhã, ouço-o chamando alguém ao telefone. É sua primeira esposa, Nancy. Sua voz é suave e tranquila e eu o ouço dizer: ‘Você é a única que me entende’. Então ele anda de um lado para o outro um pouco mais e talvez leia algo, e não adormece até o sol nascer.”

Estamos em 1954. Ava Gardner havia terminado o relacionamento com Frank Sinatra, que se mudou para o apartamento de seu amigo e compositor Jule Styne. É dele o relato acima.  Sinatra estava com 39 anos e não sofria apenas em sua vida pessoal, mas também sua carreira vinha em declínio. Reúna tudo no pacote chamado “crise da meia idade” e pense: “Se deu ruim até para o Sinatra…” Vai uma dose de conhaque?

Agora, coloque para escutar In The Wee Small Hours, lançado por Frank no ano seguinte, em 1955. Já nas primeiras notas da música que dá título ao disco somos transportados para aquelas primeiras horas da madrugada, fazendo companhia ao solitário atormentado cantando com o coração despedaçado em uma das mãos e o copo de conhaque na outra. E ainda conseguimos enxergar a fumaça do cigarro se queimando sozinho no cinzeiro, preenchendo a penumbra com uma névoa menos espessa que a da tristeza na alma do cantor.

In The Wee Small Hours é dos primeiros discos, se não o primeiro, no universo da música popular a ser conceitual, a ter um tema conectando não só as canções, mas também a capa do álbum

Este não é “apenas” um dos melhores discos de todos os tempos, mas também dos primeiros, se não o primeiro, no universo da música popular a ser conceitual, a ter um tema conectando não só as canções, mas também a capa do álbum (igualmente inovadora para a época), numa forma clara, que é a experiência solitária de um coração partido acordado de madrugada, a hora em que sente mais falta do ser ainda amado, mas perdido. Ou seja, a experiência de escutá-lo tal como concebido não é a mesma de escutar as músicas soltas ou em ordem diversa da pensada por Sinatra, que para definir isso escreveu os títulos das músicas em papéis e passou horas ordenando-os numa mesa até que se encaixassem na sequência que considerou perfeita.

Experimente, vale a pena. No lado “A”, começamos com a citada In The Wee Small Hours Of The Morning, retratando o começo da madrugada, onde a falta da mulher amada dói mais. Perceba como a voz impecável de Sinatra parece mergulhada em si, solitária, indiferente aos instrumentos que a acompanham, criando um espaço vazio entre ele e a banda, onde a tristeza profunda do cantor compõe o ambiente de Mood Indigo, a segunda música, deixando claro que você nunca esteve triste de fato se não sentiu esse “humor índigo” aqui palpável. Só nesse estado de espírito é possível entender a ironia de estar feliz em ser infeliz, cantada em Glad To Be Unhappy – com um piano que traz alento a uma voz que ganha doçura, apesar do amargor cantado – e em I Get Along Without You Very Well, das minhas preferidas.

Mergulhamos, a partir daqui, na experiência onírica descrita em Deep In A Dream: “Eu diminuo todas as luzes e afundo na minha cadeira / A fumaça do meu cigarro escala pelo ar / As paredes do meu quarto desaparecem no azul / E mergulhei fundo em um sonho com você”. A forma do sonhar acordado se define em I See Your Face Before Me, com a face da amada diante dele, a qual não consegue fazer desaparecer, lembrando de como tudo terminou, com ela perguntando: “Não podemos ser amigos?”, cantada em Can’t We Be Friends?, numa levada jazzística nos devolvendo do sonho à ironia que tenta sorrir do que só lhe faz chorar. O lado A termina com When Your Love Has Gone, com ele se perguntando: de que vale amar se tudo se acabará, deixando apenas esses castelos no ar? Dizem que Frank  estava tenso na gravação do disco, e ao fim desta música não teria suportado e caído em prantos. É o fundo do poço.

O lado B começa com ele se recompondo, perguntando o que seria o amor em What Is This Thing Called Love?, tentando encontrar resposta pela lembrança do passado onde o amor estava presente como uma estrela na noite, em Last Night When We Were Young, também pela esperança no futuro, com ele afirmando que estará por perto quando um possível novo amor dela se acabar. Mas, no fundo, percebe que está apenas se enganando, que no presente não há nascer do sol e implora ao vento que sopre e lhe deixe descansar em Ill Wind.  Lembra-se, então, de quando ela disse que ele um dia acordaria só e pediria suco de laranja apenas para uma pessoa, em It Never Entered My Mind, que, como diz o título, era algo que ele nunca acreditou que fosse acontecer.

Toma então consciência de que, na realidade, esse afogar a mágoa, pensando obsessivamente nela, tentando entender, aceitar e recusar, sonhar de novo, é uma forma de manter seu amor vivo, dançando no telhado, como canta em Dancing On The Ceiling: “Eu sussurro: ‘Vá embora, meu amor. Não é justo’. / Mas estou muito grato por descobrir / Que ela ainda está lá / Eu amo meu telhado ainda mais / Já que é uma pista de dança / Só para o meu amor”. Mas é tudo uma fantasmagoria, inútil no fim das contas. Cai a ficha de que ele nunca mais será o mesmo em I’ll Never Be The Same. O disco termina com This Love Of Mine, com uma pergunta: “Eu pergunto ao sol e à lua, as estrelas que brilham / O que vai acontecer com esse meu amor?”. Resposta não há, a não ser a certeza do último verso: “Este meu amor continuará e continuará…”

A superação de Sinatra começou por transformar sua dor, sua fragilidade, na forma de uma obra de arte, algo corajoso para uma época em que valia o dito “homem que é homem não chora”

Continuou, mas não igual. Em 1963, Frank regravou In The Wee Small Hours Of The Morning para o disco Sinatra’s Sinatra e, embora muito próxima da gravação original, é possível notar no tom de sua voz algo mais leve, de quem sofreu, mas sobreviveu, transformando a música mais numa reflexão sobre aquelas madrugadas do que um reviver da sua agonia. Superação que começou justamente por transformar sua dor, sua fragilidade, na forma de uma obra de arte, algo corajoso para uma época em que valia o dito “homem que é homem não chora”. Mas chora, desentupindo o coração da mágoa, que é o que In The Wee Small Hours pode fazer a quem tenha ouvidos para escutar.

Aliás, o disco foi gravado durante as noites entre fevereiro e abril de 1955. Em uma delas, uma repórter, Rita Kirwan, testemunhou o momento em que Sinatra tomou um gole do café morno que sobrou da última xícara que lhe foi entregue, e então levantou um pouco o inevitável chapéu da cabeça e o jogou de volta, quase como se quisesse aliviar a pressão da faixa do chapéu. O estúdio esvaziava rapidamente; apenas pedestais de partitura e cadeiras permaneceram. Sinatra se jogou em uma das cadeiras, cruzou as pernas e cantarolou um fragmento de uma das músicas que estava gravando. Imagino-o com o olhar perdido, sendo somente despertado pelo faxineiro noturno que sabe-se lá quanto depois entrara e agora arrumava o estúdio. Sinatra se surpreendeu com sua presença, conferiu o relógio e disse: “Caramba, que horas de trabalho malucas a gente tem. Nós devíamos ser encanadores, hein?”. Não deixa de ser, Frank, não deixa de ser…

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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