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Francisco Escorsim

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Música

Gilberto Gil aos 83: a despedida em forma de oração

Gilberto Gil está se despedindo dos palcos com um show que roda o Brasil
O músico Gilberto Gil está se despedindo dos palcos com um show que roda o Brasil. (Foto: Daniela Toviansky/Divulgação Globo)

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Gosto de acompanhar artistas no seu ocaso. Quando enfrentam seu fim com dignidade, costumam deixar obras-primas, como é o caso de Johnny Cash com seus discos American Recordings. Alguns também se tornam pessoas melhores, como o próprio Cash; até exemplares, como Nick Cave, que nem está tão próximo do fim assim, mas apanhou tanto da vida nos últimos anos que parece ter antecipado o crepúsculo, transformando em um meio-dia de verão.

Ainda que nem uma coisa ou outra aconteçam, o fim em si é comovente. Veja o caso de Ozzy Osbourne, que se despediu dos palcos no sábado passado. Aos 76 anos, padecendo do mal de Parkinson, mal consegue andar, tendo feito seu show sentado em um trono. Mas surpreendeu ao cantar. A voz, por mais fragilizada que estivesse, por contrastar com sua decadência física, comove qualquer um que assista à apresentação. Até os mais carrancudos metaleiros na plateia se desmancharam em lágrimas.

No mesmo dia, também Gilberto Gil se apresentava aqui em Curitiba com a sua despedida dos palcos. Aos 83 anos, a voz já não é a mesma, mas Gil é também desses, como Johnny Cash e mesmo Ozzy, que sabe fazer da fragilidade uma vantagem. Sofreu com o frio curitibano, nitidamente poupando-se em vários momentos. Mas isso tornou a despedida mais real, mais significativa.

Quando artistas enfrentam seu fim com dignidade, costumam deixar obras-primas

Especialmente na parte mais intimista do show, quando canta Se eu quiser falar com Deus, Drão, Estrela e Esotérico, com arranjos novos, com sua voz e violão acompanhados de um quarteto de cordas. É o melhor momento, quando a despedida realmente acontece e não há como o espectador não sentir que está testemunhando a última vez daquelas canções na voz de seu criador.

Se eu quiser falar com Deus ficou sublime com o trompete solitário aparecendo aqui e acolá durante a execução. A música foi composta para Roberto Carlos, mas recusada pelo rei, por achar que não seria preciso tantas coisas para se falar com Deus. O rei tinha razão, mas muitos de nós complicamos demais as coisas mesmo, só conseguindo falar com Ele desta forma, cheios de preliminares desnecessárias.

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Não precisa de nada do que a letra diz, é claro, só o cantar já é falar diretamente com Ele. E é o que parece acontecer nesta parte do show, o que significa dizer que Drão se revela sendo uma confissão, com a música composta para sua ex-mulher significando mais: “Os pecados são todos meus / Deus sabe a minha confissão, não há o que perdoar / Por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”. No telão, cenas dos três filhos pequenos de Gil com Sandra, um deles Preta Gil, que vem sofrendo de um câncer grave.

Vem Estrela, que Gilberto Gil conta ser em homenagem ao nascimento de Estrela Leminski, filha de Alice Ruiz e Paulo Leminski. Encaixada aqui, a compaixão se torna não um devir necessário, mas uma presença consoladora: “Deus fará / Absurdos / Contanto que a vida seja assim / Assim, um altar / Onde a gente celebre / Tudo que Ele consentir”.

Gilberto Gil vem se despedindo não apenas de forma digna, mas luminosa. Como Cash, como Ozzy, como Cave, transfigurando o crepúsculo da vida em aurora perene de sua música

Até que nem tanto esotérico assim, porém. O fim do trecho intimista, com a famosa Esotérico, traz a serenidade do que está à mostra, às claras, no altar de uma vida que foi assim: “E se eu sou algo incompreensível / Meu Deus é mais”. Os versos soam diferentes agora, não mais focados no que seria incompreensível, mas no que não precisa mais de compreensão. É o complemento, a resposta até, para Se eu quiser falar com Deus, como se descobrisse: “É, não precisa de tanto, não, basta querer. E falar, cantando”.

A partir dali, o show se torna uma celebração de fato, uma ação de graças. Gilberto Gil vem se despedindo não apenas de forma digna, mas luminosa. Como Cash, como Ozzy, como Cave, transfigurando o crepúsculo da vida em aurora perene de sua música. Saí do estádio onde ocorreu o show sentindo-me privilegiado por ter assistido, comovido e grato. No fim das contas, a arte nada mais é do que uma das formas dEle falar conosco, ajudando-nos a andar com fé. E é por essas e outras que a fé não costuma “faiá”.

P.S.: para o leitor que reduz a vida e a arte à dimensão política, julgando tudo à luz ideológica, remeto ao que escrevi aqui mesmo na Gazeta do Povo sobre as polêmicas de financiamento público envolvendo a turnê.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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