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Passei a semana imerso no STF. Semana infernal, portanto. Acompanhei os interrogatórios daquele teatro, daquela farsa de um julgamento a fazer harmonização facial em uma condenação de Jair Bolsonaro decidida antes mesmo de uma investigação ser iniciada. Foi por razões de trabalho, claro, não sou masoquista.
Os ministros vêm realizando também outra harmonização facial, agora na censura, com o julgamento sobre o tal artigo 19, do Marco Civil da Internet, considerado constitucional por 11 anos, mas que os ministros não acham mais que seja, acusando o Congresso de omisso por não regular as redes sociais, como se não existisse esse tal Marco Civil.
Sobre este julgamento também me inteirava por razões de trabalho, para preparar minhas participações no programa Última Análise, desta Gazeta do Povo, no YouTube, que passou esta semana cobrindo esses eventos. Aliás, assista, assista, vale a pena – até desafio a encontrar similares melhores por aí.
Será que a fala de Gilmar Mendes sobre o regime chinês era um vídeo de inteligência artificial? Não é possível ser real. Mas era
Enfim, quase no fim do programa de quarta-feira, chegou uma notificação no celular. Era uma mensagem de um amigo que, quando me manda algo, é sempre sério. Não resisti e fui conferir, podia ser algo relevante para o que discutíamos. Era o trecho do voto do ministro Gilmar Mendes, no julgamento do tal artigo 19, dizendo que “todos somos admiradores do regime chinês”, que não importa a cor do gato, mas apenas que ele cace o rato, algo assim.
Fiquei atônito por alguns bons segundos, perdendo parte da fala do sempre sensato e sereno André Marsiglia. Será que não era um vídeo de inteligência artificial? Não é possível ser real. Mas era. O decano havia mesmo citado Deng Xiaoping e sua famosa frase sobre gatos e ratos. Como se a eficiência pragmática chinesa fosse modelo para uma democracia. Aquela mesma eficiência que constrói campos de concentração para uigures e censura até emojis no WeChat (o WhatsApp deles).
Quando você começa a mexer num ponto da face, precisa mexer em vários outros para manter a “harmonia”. Começou-se autorizando um inquérito absurdo aqui, depois foi preciso inventar uma interpretação bizarra ali, alargar a competência até os EUA e avante, até que, para manter a coerência do conjunto deformado, foi preciso mexer na própria bússola moral. É o que aconteceu agora.
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A harmonização facial servia aos senhores ministros para lhes fazer parecer natural o que é grotesco, fazer parecer democrático o que é autoritário, fazer parecer proteção o que é controle, fazer parecer regulação o que é censura. A harmonização facial da censura está completa.
Não é preciso mais maquiar o autoritarismo com algum verniz jurídico; agora, importamos explicitamente a filosofia de regimes que transformaram a internet em intranet, onde cada clique é monitorado e cada palavra dissidente é apagada antes mesmo de ser publicada. Na China do gato caçador de ratos não há textos como este, não há programas como o Última Análise, não há debate, não há nem mesmo a possibilidade de questionar se o gato não estaria caçando canários.
Tal como em uma harmonização facial falhada que horroriza quem a vê, mas que o harmonizado acha ter ficado linda, eis Gilmar Mendes admirando a ditadura chinesa como se democracia fosse. Pena que o rosto demonizado não seja apenas o dele, é o nosso também.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




