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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Semana Santa

Entre Legendários e santos cobertos

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Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Grok)

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O ritual sagrado do acordar: o café da manhã acompanhado de alguma leitura. Com a crepioca me fiz acompanhar de trechos do segundo livro de Dom Quixote. Para terminar, li na tela azul do celular as notícias esquecíveis do dia. Enquanto mastigava distraidamente uma fatia de queijo, fui informado da existência dos Legendários.

Não, não “legionários”, aqueles de Roma, tampouco o antigo programa de humor comandado por Marcos Mion, mas o grupo de homens evangélicos que se reúnem em retiros montanhosos para se reconectar com sua identidade masculina à luz da Bíblia. Fiquei a imaginar fogueiras, pneus de tratores sendo carregados, abraços viris e lágrimas contidas.

Engoli o último gole de café, já frio, com gosto de algo esquecido por tempo demais. Deixei a xícara na pia e saí de casa. O céu de abril estava indeciso entre o nublado e o luminoso, como se sol e nuvens o disputassem, como se nem ele soubesse que história contar naquela manhã.

Todos precisamos encontrar caminhos para nos aproximar de Deus. Os Legendários, em suas montanhas, talvez buscassem o mesmo que eu nos bancos de madeira da velha igreja

Caminhei até a catedral, sem conseguir esquecer dos legionários, digo, legendários. Senti-me tentado a julgar o que não conhecia, mas me refreei, lutando com algo que me incomodava, sem saber exatamente o que e por quê. Não parecia ser apenas meu velho orgulho, travestido de senso de ridículo, falando.

Todos precisamos encontrar caminhos para nos aproximar de Deus. Eles, em suas montanhas, talvez buscassem o mesmo que eu nos bancos de madeira da velha igreja. A mesma sede, bebedouros distintos.

A igreja estava quase vazia quando entrei. O silêncio pesava como as pedras das paredes e colunas. Sentei-me num banco de madeira polida por décadas de fiéis, sentindo o frio subir pelas pernas. Olhei ao redor e vi as imagens todas cobertas por tecidos roxos – tradição antiga da Semana Santa. Santos, anjos e até o próprio Cristo crucificado, todos escondidos sob véus de penitência.

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A luz entrava pelas vidraças coloridas, projetando no chão manchas de azul, vermelho e dourado. Pensei em quantas vezes minha própria fé se perde em distrações. Quantas vezes me apego às formas, às tradições, aos rituais, aos símbolos, esquecendo-me do essencial. Os véus roxos estavam ali para isso, para nos despojar do acessório e contemplar o essencial.

Então, entendi meu incômodo com os legendários. Talvez mais com a notícia sobre sua existência justo na Semana Santa. Também entendi o incômodo com meu incômodo. Eram todos véus, não como esses roxos a nos reconduzir ao essencial, mas a revesti-lo chamando atenção para outras coisas, algumas até bem relevantes (não meu incômodo), mas que não são o essencial.

Um raio de sol mais intenso atravessou o vitral principal, iluminando o altar onde o crucifixo estava coberto. A poeira dançava no feixe de luz como pensamentos soltos. Fechei os olhos e tentei imaginar o que está além dos véus – não a ausência de tradição ou ritual, nem a presença de santos e símbolos, mas o cumprimento pleno de tudo o que significam.

Pensei em quantas vezes minha própria fé se perde em distrações. Quantas vezes me apego às formas, às tradições, aos rituais, aos símbolos, esquecendo-me do essencial

O que vi ou desejei ver?

Apenas um homem que lavou pés empoeirados, que tocou leprosos, que chorou por amigos, que se enfureceu com mercadores, que duvidou no jardim, que perguntou por que havia sido abandonado. Um homem que daqui a algumas horas, há tantos mil anos atrás, pendia de uma madeira bruta, exposto, sem véus.

O cheiro de cera e incenso preenchia minhas narinas enquanto uma senhora idosa entrava mancando levemente, carregando flores brancas. Ela as depositou silenciosamente próximo ao altar e se ajoelhou com dificuldade. Não rezava olhando para santos cobertos ou crucifixos velados – apenas fechou os olhos e ficou ali, com o terço deslizando entre seus dedos nodosos, em conversa muda, sem parecer precisar de outros intermediários.

Levantei-me devagar. O banco rangeu como se reclamasse da minha partida precoce. Passei pela senhora sem perturbá-la e, antes de sair, olhei uma última vez para as imagens cobertas. Lá fora, o céu havia se decidido. O sol brilhava com claridade quase dolorosa, como uma verdade forte demais para ser encarada de maneira simples e direta.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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