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Greg O'Beirne/Wikimedia Commons
Greg O'Beirne/Wikimedia Commons| Foto:

Para quem queira saber o que é a vocação intelectual o recomendado é ler a tetralogia platônica sobre o julgamento de Sócrates: Eutífron, diálogo sobre a relação da piedade com a Justiça datado de quando Sócrates já estava sendo processado por “corromper a juventude ateniense”; Apologia de Sócrates, que é seu discurso de defesa no tribunal; Críton, em que Sócrates dá sua resposta à injustiça sofrida; e Fédon, que traz seus últimos instantes de vida e uma meditação belíssima sobre a imortalidade da alma.

Se não tem paciência para ler todos, leia ao menos a Apologia. Ali está, em essência, a defesa da vocação do intelectual: seu amor à verdade, nada mais do que a verdade:

“Mas o que eu penso, senhores, é que em verdade só o deus é sábio, e que com esse oráculo queria ele significar que a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que não se referia particularmente a Sócrates e que se serviu do meu nome à guisa de exemplo, como se dissesse: Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer, realmente, nada no terreno da sabedoria”.

 Sócrates é acusado disso, no fim das contas, pelos intelectuais, poetas, políticos e empreendedores da época. De tornar impossível negar a realidade de que somos servos da verdade, apesar de infiéis em vários aspectos, muitas vezes nos mais valiosos para nós.

Semana passada fiz um comentário breve sobre o livro “Como conversar com um fascista”, de Márcia Tiburi. E tudo que disse não foi nada além disso: ela não tem amor pela verdade, apenas pela sua visão de mundo. No agradecimento do livro, ela deixa explícito em nome de que o escreveu: “O pensamento não é neutro; ou ele é a confirmação do estado de coisas, ou é crítico e transformador das subjetividades na direção de um pensamento lúcido entrelaçado a práticas lúcidas em tempos obscurantistas”.

 Que “lucidez” seria essa senão a defesa dos valores progressistas que ela toma por pressuposto de verdade? A filiação intelectual da autora fica clara, não é socrática, é marxista: quer transformar o mundo.

É possível ser socrático e marxista ao mesmo tempo? Claro que sim, basta ter a honestidade e coragem intelectual de também ser crítico com o ideal que toma por pressuposto para tentar mudar o mundo. Mas quando o amor à verdade é menor do que à esse ideal, a vocação intelectual é prostituída e não temos mais um intelectual, apenas um Cazuza precisando de uma ideologia para viver.

Nesse caso, tudo que os Cazuzas têm a dizer são sofismas embalados em erística. Ou seja, uma retórica que só busca vencer um debate, abandonando qualquer preocupação com a verdade. É o caso de “Como conversar com um fascista”.

E o que acontece se isso se torna a regra não escrita da vida intelectual? Acontece o que temos visto no país. Não há mais possibilidade de diálogo, conversa, debate intelectual, tão-somente disputa ideológica e guerra cultural, cujo único critério para julgamento é saber se o sujeito fala desde a “direita” ou “esquerda”.

Esta Gazeta do Povo se tornou um dos locais mais interessantes do país para se ter noção desse estado de coisas. Ela “abriu as portas” a formadores de opinião “de direita”, mas não “expulsou” os “de esquerda”. Isso significa que ao menos aqui o diálogo e debate é possível. Entretanto, passeie pelas colunas e blogs do jornal, confirme isso e repare como uns fingimos ignorar os outros e nenhum diálogo acontece.

Dou um exemplo pessoal. Quando comecei a escrever neste jornal tive oportunidade de conversar com jornalistas e formadores de opinião “de esquerda”. O que mais me chamou a atenção foi o quanto alguns não admitiam se pudesse dar voz a “fanáticos” como, segundo um deles me disse, Flávio Quintela e Rodrigo Constantino. Claro que foi só questão de tempo para eu ser taxado também como “fanático” e todo diálogo recusado.

E por que o diálogo parece ser tão difícil? Porque quando se trata de uma guerra é matar ou morrer. E como se mata intelectualmente? Primeiro, ignorando. É o caso e foi também o que a esquerda fez com Olavo de Carvalho por mais de década, por exemplo.

Agora, quando ignorar não é mais possível, então não dá para fingir ser tão “bonzinho” assim e o boicote e a censura se tornam uma necessidade para se tentar evitar que as pessoas leiam e discutam sobre as idéias dos inimigos.

Exemplos recentes disso vimos no caso de professores da faculdade de história da universidade estadual de Maringá, e outro semelhante no Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano (Nuped), vinculado ao Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da PUCPR, bem como no festival de cinema de Pernambuco deste ano.

Mesmíssima “tática” se vê no campo da “direita”, pródiga em “tretas” internas. Quando a editora Record abriu espaço para autores assim considerados, não faltou na turma da direita quem defendesse que algumas obras não deveriam sequer existir, muito menos lidas, como “A Poeira da Glória”, de Martim Vasques da Cunha, e “A Imaginação Totalitária”, de Francisco Razzo. Disseram isso porque leram e fizeram a crítica? Não, foi no melhor estilo “não li, não gostei e já julguei”.

Quando o boicote começa a ficar ostensivo, ele vai se revelando pelo que é, na realidade:  assassinato de reputação. De novo, o exemplo do livro de Márcia Tiburi serve aqui: quando acuso o outro de fascista é porque não quero diálogo nenhum com ele, quero calá-lo por considerá-lo indigno de ser ouvido. A mesma coisa no caso dos colegas formadores de opinião que chamam os adversários de fanáticos e no dos direitistas que acham melhor que obras não sejam publicadas porque desgostam de seus autores – a propósito, o comum na direita é chamar desafetos de canalhas, não de fanáticos.

Ainda, se a esquerda unificou seu assassinato de reputação ao abuso da palavra “fascista”, a direita sempre abusou do famoso “comunista”. Mas agora a direita tem se diversificado, o que não deixa de ser um avanço. Temos, por exemplo, as acusações de “socialista fabiano”, de “direita xucra”, da “falsa direita” etc.

As últimas semanas têm sido pródigas em exemplos de tentativas de assassinato de reputação na direita, aliás. O blog de Rodrigo Constantino tem dado voz ao que vem se passando no jet set direitoso, tornando-se quase uma mistura de coluna social e policial.

Mas deixemos o mundo de Cazuza de lado e vejamos como alguém vocacionado à vida intelectual desvia desse rebaixamento moral e cultural e tenta ser digno da verdade. Darei um exemplo concreto. Tive a felicidade de conhecer um intelectual de verdade, ainda jovem, mas já mais maduro do que muito “macaco velho” por aí. Refiro-me a Filipe G. Martins, também colaborador desta Gazeta do Povo.

Nesse naufrágio intelectual que vivemos, Filipe “precisa” ser taxado como um intelectual de direita – como eu mesmo, aliás, embora não perca tempo me definindo por esse critério. Enfim, estive presente em duas palestras suas recentes sobre geopolítica e uma das coisas que aprendi, que ficou muito claro com suas explanações, é o quanto esses conceitos de esquerda e direita foram engolidos pelos de nacionalismo e globalismo na atualidade.

Quem quer entender o que se passa e só consegue pensar em termos de esquerda e direita, nada entenderá do que realmente está acontecendo. Para Filipe, no Brasil não temos de um lado Bolsonaro e Dória, na direita e, do outro, Marina e Ciro Gomes – para ficarmos nos presidenciáveis possíveis, já que Lula é mais caso de polícia. Temos Bolsonaro e Ciro Gomes, pelo lado nacionalista, e Dória e Marina, pelo lado globalista. Só depois as diferenças entre esquerda e direita darão a distinção “dentro” desses lados.

É por isso que, recentemente, Ciro Gomes declarou que prefere mil vezes um Bolsonaro a um “farsante” como Dória. E em outra entrevista confirmou que mede as palavras para falar de Bolsonaro por duas razões: 1) porque considera importante que ele tenha legitimidade e com isso dê voz a milhares de brasileiros que não se sentem representados pela esquerda; e 2) lembrou que em 2002 Bolsonaro votou nele, eleição que teve candidato de direita: Enéas Carneiro.

Tente entender isso apenas pela ótica esquerda x direita e será obrigado a reduzir tudo a uma tática eleitoral, deixando de dar atenção ao fato mais importante e que escapa dessa análise: Bolsonaro votou em Ciro quando tinha Enéas. Além disso, também apoiou no mesmo ano o comunista Aldo Rebelo para Ministro da Defesa. Ora, como entender essas coisas à luz do embate direita x esquerda? Não dá, o critério tem de ser outro e mais amplo e é o que Filipe expõe, esclarecendo muita coisa.

Como Filipe é um intelectual cumprindo seu dever, procurando a verdade e tentando entender a realidade, não “transformá-la” conforme sua preferência ideológica, consegue iluminar e possibilitar uma compreensão maior do jogo político em que vivemos. Mas, adivinha do que andam chamando o Filipe G. Martins por aí? Dou-te um adesivo de “Cirão da Massa” se você adivinhar.

Como, então, dialogar sobre isso, debater, independente de sermos de esquerda ou direita? Isso deveria acontecer nos lugares próprios para isso: universidades, imprensa e mercado editorial, onde a Babel das opiniões de toda ordem vindas das redes sociais tem menos força para confundir todas as vozes.

Mas aí voltamos ao nosso naufrágio intelectual, pois esses lugares, com raras exceções, tornaram-se também a frente de batalha dessa guerra ideológica e mais nada. Significa dizer também que quando e se um deles é “dominado” por uma das “facções” em luta, não se pode abrir a porta ao inimigo. E se a porta é aberta, como aconteceu nesta Gazeta do Povo, ainda assim é preciso superar a “guerra fria” a que me referi. Como sou estraga-prazer, não conheço outra forma que não seja esquentando a treta: mais Sócrates, menos Cazuza, por favor.

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