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Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Homens e/ou deuses

O que há em comum entre os mitos de Xangô e Xandão?

Alexandre de Moraes Xangô
Alexandre de Moraes foi tema de perfil e ensaio fotográfico na revista New Yorker. (Foto: Felipe Sampaio / SCO / STF)

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“Quando terminamos de conversar, [Alexandre] de Moraes me acompanhou até a saída, passando por uma exibição de alguns objetos de valor. Incluíam uma camisa do seu amado time de futebol, o Corinthians, e duas efígies de madeira de divindades afro-brasileiras. Ele explicou que eram Xangô e Exu – ‘lei e ordem’, disse ele. Espere, eu disse. Xangô não é um deus da guerra? De Moraes apenas sorriu e me conduziu pela porta.”

Assim termina a longa peça de propaganda de “de Moraes” feita pelo jornalista Jon Lee Anderson para a edição desta semana da revista New Yorker. Para qualquer brasileiro razoavelmente informado, o texto traz pouca novidade e, como esperado, nenhum contraponto à narrativa constrangedora que tenta transformar o ministro em herói. Mas no pouco que traz de novo muito se revela, como neste parágrafo final.

Xangô e Exu são símbolos de “lei e ordem”? Xangô seria um deus da guerra? Como fiz uma viagem à Bahia anos atrás e conheci melhor as histórias dos orixás, estranhei essas associações. Do que lembrava, Xangô seria um deus da justiça, que não se reduz à “lei e ordem”, muito menos à guerra. Fui conferir e, de fato, é o orixá da justiça. O da guerra seria Ogum.

Até aí, nada de mais; afinal, não é espantoso que o ministro entenda pouco ou errado sobre suas próprias crenças e convicções. Entretanto, nesta breve pesquisa acabei conhecendo algo mais sobre a história de Xangô que tornou a revelação mais interessante e significativa.

Nas fotos do ensaio fotográfico que acompanha o perfil da New Yorker, Moraes posa como reis e imperadores de séculos anteriores posaram para pintores fazerem seus retratos

Historiadores acreditam que Xangô teria sido um personagem histórico que passou a ser divinizado depois de sua morte. Xangô teria sido um alafim (rei) do império iorubá de Oió, que existiu entre o que hoje é a Nigéria e o Benin. Teria sido o quarto alafim de Oió, conquistando o poder depois de destituir o seu próprio irmão.

Segundo a história, Xangô era um expansionista do reino e, buscando obter mais poder, enviou sua esposa Iansã a um povo vizinho detentor de uma poção mágica que daria o poder de expelir fogo pela boca. Iansã conseguiu o elixir e Xangô o tomou, passando a praticar o lançamento de fogo pelos lábios.

Entretanto, em um desses treinos, exagerou nos caps lock, pontos de exclamação e superlativos, acidentalmente incendiando o próprio palácio. O fogo não foi controlado e se espalhou por toda a cidade, causando um estrago sem precedentes.

(importante parênteses aqui: qualquer semelhança com outra realidade é mera coincidência)

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Como resultado, Xangô foi destituído do trono e, para preservar sua honra, segundo a tradição, teria de se matar. Algo semelhante ao haraquiri dos samurais japoneses. No caso de Xangô, o suicídio foi por enforcamento, pendurando-se em uma árvore. Depois de sua morte, porém, seu corpo teria desaparecido. Segundo a mitologia, Xangô foi enviado a Orum, o mundo espiritual dos orixás, tornando-se um deles.

Voltando à reportagem, ainda que o leitor não a tenha lido, provavelmente viu por aí alguma das fotos do ensaio fotográfico que a acompanha. Nelas, o ministro posa como reis e imperadores de séculos anteriores posaram para pintores fazerem seus retratos. Em uma, tem até os olhos fechados, como que em deleite com seu poder. Somadas à narrativa, eis em curso a tentativa de criação de um mito, no mau sentido da palavra.

Para uma análise mais aprofundada desta reportagem e da figura do ministro, convido o leitor a assistir ao episódio da última quarta-feira do programa Última Análise, no canal do YouTube da Gazeta do Povo. Tenho a honra de ser um dos comentaristas e neste dia nos dedicamos a desmistificar a narrativa e o suposto herói.

Por fim, respondendo à pergunta do título: há uma analogia bastante evidente entre a origem do mito de Xangô e a construção em curso do mito de Xandão, mas o calor das chamas está forte e perto demais para fazer isso agora.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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