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A cantora Natalia Lafourcade, em foto de 2018.
A cantora Natalia Lafourcade, em foto de 2018.| Foto: Martinbayo/Wikimedia Commons

Desconhecia Natalia Lafourcade até dias atrás. Dando uma “bizoiada” nas listas de melhores discos do ano, chamou-me a atenção a descrição do dela, De Todas Las Flores, lançado recentemente. Foi amor à primeira audição, ainda sem dar maior atenção às letras, à forma da obra. Quando dei, deslumbrei-me com seu jardim celebratório de vida por causa da morte, não apesar dela.

Depois de algumas perdas na vida – de entes queridos para a morte nos últimos anos (avó, tio, primo e sobrinho); de bens materiais para desastres naturais (um terremoto destruiu um centro cultural em sua terra natal, Veracruz, no México, com ela se engajando em uma campanha para arrecadar fundos e reconstruí-lo); e de um relacionamento amoroso terminado recentemente –, Natalia percebeu que precisava se recolher, se redescobrir, renascer.

Com a pandemia se isolou em sua casa de campo, distante da cidade de Veracruz, em particular seu jardim, no qual foi compondo as músicas de De Todas Las Flores, uma espécie de diário musical de seu processo de cura e renascimento. Ali também construiu um estúdio em meio às árvores, onde gravou as novas músicas “à moda antiga”, ao vivo em fitas analógicas, sem nada das tecnologias atuais que tornam quase desnecessária a presença humana. Seu produtor, Adán Jodorowsky, nem sequer usou metrônomo para marcar o tempo das músicas: “É tão orgânico, você sente a qualidade da gravação quando ela canta”.

De Todas Las Flores é um disco sobre fé e esperança na vida, não pelo que se conquistou nela, mas pelo que se perdeu

De fato, escutar o disco é escapar do mais do mesmo que a indústria musical despeja às toneladas hoje em dia, parecendo uma viagem no tempo resgatando as raízes da música latina, misturando-a ao jazz tradicional, também à bossa-nova, parecendo ser mais original do que de fato é, pelo contraste com o lixão eletrônico em que vivemos atualmente. Também por isso, há um frescor na audição, como numa manhã solar de primavera de tempo agradável em que se escuta as folhas das árvores bailando ao vento suave e as flores a sorrir num jardim repleto delas, nascidas das rachaduras feitas pelas dores da vida.

O título da coluna é uma frase dita pela compositora ao fazer uma conexão entre seu disco e Blue, a obra-prima de Joni Mitchell. A conexão existe na honestidade desarmada com que ambas são confessionais, mas as diferenças importam mais. Se Joni Mitchell transmuta a tristeza de suas dores de amor em ternura consoladora com suas músicas, Lafourcade parte dessa transmutação realizada para o brotar de vida nova que faz do lamento pelo que morreu ou se perdeu também uma ação de graças e uma afirmação de vida.

De Todas Las Flores é um disco sobre fé e esperança na vida, não pelo que se conquistou nela, mas pelo que se perdeu, como canta em Muerte: “Agradeço à morte por me ensinar a viver”. Para aprender, antes foi preciso encarar e aceitar o que a morte nos arranca. Na magistral Vine Solita, que abre o disco, uma introdução orquestrada com um violino choroso perdura em torno de 1m30s, silenciando para dar lugar a um violão singelo, tocado em respiros mudos, com a voz de Natalia rasgando o vazio, dizendo que a esse mundo veio sozinha e sozinha dele sairá, mas entre um e outro momento seguirá sonhando com despertar, nascendo a cada dia, aferrando-se à vida dentro dela.

O disco já valeria a pena unicamente por esta linda música, mas tem mais. O lamento do que perdeu é cantado nas igualmente belas De Todas Las Flores e Passan Los Dias, com a tristeza refeita em ternura e então entregue ao vento em Llévame viento: “Vento, leve-me onde a névoa não pode me encontrar”. Começa a cicatrização das feridas. Em Pajarito Colibri, a fragilidade da esperança renascente simbolizada por um beija-flor arrisca voar: “Beija-flor, não tenha mais medo de viver / Vai dar tudo certo, beija-flor / Você veio ao mundo para ser feliz”. A cura se apresenta com Maria La Curandera: “Cure-se, minha menina, com o amor do mais belo e acenda o fogo / Entregue suas dores, para que se transformem em pó e novas flores venham”.

E as novas flores vieram, com Caminar Bonito (“E agradeço por ter entendido uma humilde lição, caminhar bonito / Cada dia elejo, pois a vida são montanhas que quero atravessar junto”), Canta la arena (“Se me beija o mar, toda já me tem”) e, especialmente, Mi Manera de Querer: “Em minha maneira de querer não tem maquiagem / Na minha maneira de querer não tem filtros nem erros / É algo simples, mas profundo / Amor sincero que nesse mundo / Já não me importa que seja entendido, te dou amor”.

Mas o maior teste do que aprendemos com a morte é sempre uma nova morte. E ela veio. Seu sobrinho, Nicolas, caiu de um penhasco numa escalada solitária no Chile. Enquanto era procurado até seu corpo ser encontrado, levou cinco dias. Nesse tempo, Natalia compôs Que te vaya bonito Nicolás, uma canção de despedida na qual o piano triste do início é absorvido no dedilhar do violão a dar a base para uma oração feita de fé e esperança: “Nicolás, que as ondas quebrem / Que o vento leve nossas lágrimas e dores / Nicolás, que caiam as tempestades / E te encontraremos nas estrelas, por favor”.

Escutar De Todas Las Flores, com a devida atenção, é deixar-se conduzir para esse “lugar correto”, que não é outro senão alguma das rachaduras de nossas dores e perdas em que nossa vida parece ter sido escondida e esquecida

E o que, enfim, a morte ensinou sobre viver? Creio que El Lugar Correcto, minha preferida do disco, é a melhor resposta: “Perdoa se chorei, chorei, chorei enquanto bailava / Tinha dores velhas que atender daquele passado / Então regressei a esse silêncio necessário / Para escutar o coração falar da verdade / Da verdade que são esses entardeceres / Da verdade que brilha no tempo presente / Da verdade que há naquelas coisas simples, como respirar”. A verdade, enfim, do “aqui e agora”, seja onde, quando e como for, do que está diante dos olhos e por vezes não vemos, nublados que estamos pelos pensares e pesares dos sofrimentos da vida.

Escutar De Todas Las Flores, com a devida atenção, é deixar-se conduzir para esse “lugar correto”, que não é outro senão alguma das rachaduras de nossas dores e perdas em que nossa vida parece ter sido escondida e esquecida. O “lugar correto” em que podemos enxergar que mesmo ali, onde parece que nada mais resta, nada ficou, senão o pó do que não mais existe, é dali e por ali que nossa vida, tal como uma flor, tão bela e efêmera quanto, renasce.

O “lugar correto” em que a morte é parte da vida, não sua negação, muito menos sua ausência e, quando realmente integrada, revela o de que realmente somos feitos, como cantou em Muerte, que poderia se chamar “Vida”: “De ter olhado para a morte / É que hoje eu ando pela vida / Com fé e alma ardente / Morte / Por saudar a morte / É que hoje eu valorizo ​​o amor / Que nasce em mim, para sempre”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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