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O apanhador de desperdícios
| Foto: Bigstock

Era um desses dias surpreendentes para Curitiba, de um outono desfeito em rara primavera, com tempo agradável, céu límpido e profundo numa manhã luminosa e terna, como uma oração de quietude.

Caminhava pela 7 de abril quando avistei defronte a um predinho, daqueles antigos, mas bem cuidados, um sujeito na sombra procurando mais sombra, de blusa de lã azul marinho invernal, fumando um cigarro e bebendo café num copinho descartável, apoiado na mureta ao lado das lixeiras do edifício.

Refugiava-se de uma briga de casal? Dos filhos pequenos chorando o tempo todo? Do trabalho, obrigado ao home office num sábado com cara de feriado? Dos pais, frustrado por ser “velho” e ainda morar com eles? Ou seria apenas tentativa de distração da solidão de um apartamento resfriado de companhia humana?

A cena era tão sugestiva de um intervalo no vazio ou caos que quase parei, compadecido por tanta compreensão hipotética. Mas conheço meus demônios, então apenas olhei e passei. O sujeito nem me notou, tragando com força o cigarro, rodando o copinho de café no muro, imerso em sabe-se lá que redemoinho de pensamentos.

No boteco, entre copos cheios de Serra Malte, porções de lambari e jacaré, o sujeito volta e meia me voltava à mente. Comentei com o Paulo (o Polzonoff), parceiro de mesa, que daria uma boa crônica. No que concordou, mas sem anotar no seu caderninho mental de ideias, talvez por instintivamente se defender de seus próprios demônios, que desconfio serem parecidos com os meus, senão os mesmos.

A cena era tão sugestiva de um intervalo no vazio ou caos que quase parei, compadecido por tanta compreensão hipotética

Na volta pra casa, ao passar pelo predinho, sem mais ninguém na calçada, começou a tocar Miss Misery, de Elliot Smith, o que me fez sorrir pela ironia. Tocasse na vinda, casaria com o fumante, mas no retorno, naquele quase fim de tarde de suficiente calor recolhido na alma, apenas me fez sorrir. O que tocava em meu fone quando passei pelo sujeito mais cedo? Bem que podia ter sido Perfect Day, do Lou Reed. Pois fica sendo.

Há duas quadras de casa, avistei um senhorzinho com passos curtos e lentos, bem agasalhado, precavido com a friagem que nos recobriria em breve. Em breve cálculo etílico, deduzi que em poucos segundos o ultrapassaria, mas ele fazia algo que me fez conter o passo à velocidade do dele.

Era uma rua arborizada e em cada uma das árvores por que passava o senhorzinho acariciava uma folha, sem arrancá-la. Ia com a mão a meia altura, como uma criança brincando com o vento pela janela aberta de um carro em movimento. Ao passar por ele, cumprimentei-o, testemunhando que ele caminhava sorrindo, só parando para me responder: “Deus lhe acompanhe!”

Lembrei de Manoel de Barros, o poeta que se intitulava apanhador de desperdícios e dizia: “Eu não trato das coisas desimportantes. Elas que são agarrativas e se pregam em minhas palavras.”

Fosse eu um poeta, desconfio que seria desses, grávido de coisas desimportantes. Como não tenho palavras parindo poemas, resta-me a crônica, essa irmã desimportante da poesia. Talvez mais descartável para o leitor, como um copinho de café. Mas nem sempre. Às vezes, a crônica é como uma folhinha de árvore com um leitor atencioso a acarinhá-la enquanto Deus lhe acompanha.

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