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Detalhe de gravura de Gustave Doré mostrando Filippo Argenti abordando Dante e Virgílio no inferno.
Detalhe de gravura de Gustave Doré mostrando Filippo Argenti abordando Dante e Virgílio no inferno.| Foto: Reprodução/Domínio público

Não sei explicar por quê. Anos atrás fiz uma viagem à Amazônia, comprando um terço vendido em uma comunidade ribeirinha. Havia vários iguais, não era “peça exclusiva”. Terço simples, artesanal, com contas de madeira pintadas em preto e branco.

Não sei explicar por que ele é meu terço preferido. Tenho outros muito mais bem-feitos, belos, significativos, vindos de lugares santos, dados por pessoas em estado de graça. Ainda assim, rezo mais com este da Amazônia, que nem benzido está. Foi a última coisa de que me despi quando me levaram para o centro cirúrgico.

Foi uma cirurgia de baixo risco: retirada da vesícula. Estava repleta de pedrinhas e, no intervalo de semanas entre o exame e o procedimento, duas pedras maiores se formaram. A médica as guardou e me deu de lembrança num potinho.

Tenho terços muito mais bem-feitos, belos, significativos, vindos de lugares santos, dados por pessoas em estado de graça. Ainda assim, rezo mais com este, comprado na Amazônia e que nem benzido está

Passei a semana me recuperando, vivendo naquela dimensão temporal particular da convalescença que distancia do tempo comum da vida, especialmente seu ritmo, diminuindo o estresse, a ansiedade, pela presença da dor quase constante que gera cansaço e o efeito aliviante dos remédios que dão sono.

E foi assim que acompanhei a histeria da semana, com o cancelamento em massa do imprudente podcaster Monark, mais a tentativa de cassação do mandato do imaturo deputado Kim Kataguiri, “fechando” com a demissão do histriônico comentarista da Jovem Pan, Adrilles Jorge. Tudo envolvendo uma suposta defesa do nazismo, que não existiu em nenhum dos casos.

O que não significa que os citados estivessem certos no que disseram ou fizeram. E, graças a Deus, sobre isso nada mais precisa ser dito além do que o editorial desta Gazeta do Povo já disse, ao que remeto o leitor interessado nos detalhes factuais e análise mais detida do que se passou.

No que fiquei a pensar foi em Dante Alighieri quando passou pelo círculo infernal dos “vencidos pela ira”, como diz Virgílio no canto VIII d’A Divina Comédia. Ou seja, quando passavam pelo círculo do Twitter (ou qualquer rede social). Não sei se já leu ou se reparou neste canto, leitor, que Dante e o próprio Virgílio são “contaminados” por essa ira, sendo também vencidos por ela, se regozijando quando um adversário de Dante, Filippo Argenti, é dilacerado por outros condenados.

É exatamente assim que nos comportamos nas redes sociais, especialmente no Twitter. Se há algo que une a todos por lá é o gozo com a destruição do adversário transformado em inimigo mortal. Tanto faz qual seja o seu lado, você se sente um Dante todo justificado a se comportar como um condenado no inferno sem se dar conta.

Mas se até um Dante e Virgílio caíram vencidos pela ira, que chance temos de resistir ou reagir? Se tudo em volta induz ao ódio, à vingança e ao gozo pela destruição e morte? Por causa da leitura da obra de Dante assisti ao documentário O Ato de Matar, que “coloca ex-líderes de esquadrões da morte indonésios a recriar seus assassinatos em massa em qualquer gênero cinematográfico que desejem, incluindo cenas clássicas de crimes de Hollywood”, conforme consta da descrição no IMDB.

Se há algo que une a todos nas redes sociais é o gozo com a destruição do adversário transformado em inimigo mortal, tanto faz qual seja o seu lado

Se você quer começar a lutar consigo mesmo para não ser vencido pela ira, recomendo assistir. É medicinal, como foi para um dos assassinos, Anwar Congo, ter representado o que fizera no passado, que tanto lhe orgulhava, mas que no processo de recriação foi lhe dando repulsa, pela consciência sendo adquirida do horror cometido.

É um filme chocante, perturbador, mesmo não mostrando nenhuma morte real, apenas a recriação “artística” da realidade. O que perturba, o que choca, é que, fora Anwar, nenhum deles se dá conta dos demônios que se tornaram. Achavam-se heróis da pátria lutando contra o comunismo.

A certa altura, um dos mais espertos, ministro de algo no país, assiste a uma cena e percebe que se fosse mostrada de forma tão realista o tiro sairia pela culatra e eles não seriam vistos como heróis, mas monstros. Então, pediu modificações, falando: “Devemos exterminá-los, mas de uma forma mais humana”.

Se você imediatamente não percebe o absurdo dessa fala, como o sujeito lá nem se deu conta, você está vencido pela ira. E talvez só olhando no espelho das maldades já cometidas seja capaz de tomar consciência do inferno em que já vive, como Anwar foi sendo obrigado a fazer sem querer na gravação do documentário. As cenas finais impressionam, com ele vomitando bile de nojo de si, o que me devolve à minha vesícula extraída e ao meu terço.

Na prática médica antiga, a bile formava, junto com a água e o sangue, os líquidos do corpo, sendo que ela era de duas espécies, tendo a amarela e a negra. A amarela era associada ao elemento fogo e, se fosse produzida de forma desproporcional no organismo, causava raiva no sujeito. A bile amarela contribui na derrota para a ira, portanto. Anwar vomitava sua ira. Era um começo de cura.

A ira vai formando seu terço de oração demoníaca petrificando-se em contas pequenas feitas de ressentimentos e rancores entre contas maiores de ódio explícito e violência

A medicina progrediu infinitamente desde então e o que restou daquela prática foi mais um uso simbólico do que realmente prático. Mas é o símbolo que me interessa aqui. Naquele círculo infernal da Divina Comédia, os irados mais violentos aparecem à tona de um mar de lama, mas no fundo desse mar existem os rancorosos, ressentidos. A ira vai formando seu terço de oração demoníaca assim, petrificando-se em contas pequenas feitas de ressentimentos e rancores entre contas maiores de ódio explícito e violência.

Miro o potinho à minha frente contendo as duas pedras maiores retiradas da vesícula extirpada, que é o órgão responsável por armazenar e excretar a bile. No meu caso, era. Decido colocá-lo ao lado de um pequeno crucifixo, diante do qual costumo rezar com meu terço amazônico. É minha forma de lembrar de vomitar minha ira antes que se petrifique. Mas cura mesmo, só com o ato de rezar.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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