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Detalhe de “A Ponte do Rio Kwai”, de Leo Rawlings, prisioneiro de guerra que participou da construção da Ferrovia da Birmânia.
Detalhe de “A Ponte do Rio Kwai”, de Leo Rawlings, prisioneiro de guerra que participou da construção da Ferrovia da Birmânia.| Foto: Imperial War Museum/Domínio público

“Um bom livro, ele concluíra, nos deixa querendo relê-lo. Um grande livro nos compele a reler a própria alma.”

Quando li essa passagem nas primeiras páginas de O caminho estreito para os confins do Norte, de Richard Flanagan, parei a leitura e fiquei a encarar essas frases, pensando no quão acertadas são, quão precisas. Ao retomar a leitura, questionei-me: “e este, será um grande livro?” Porque me parecia óbvio que uma afirmação como essa não deixava de ser um manifesto ou uma “carta de intenções”. A pretensão de Flanagan não poderia ser pouca.

Mas um escritor só consegue compelir o leitor a reler a própria alma se no processo da escrita tiver relido a sua e a obra transparecer isso, comunicar essa releitura. É o caso aqui. Flanagan levou 12 anos para conseguir escrever esse romance. Por cinco vezes tentou, desistindo em todas, queimando os rascunhos. Escreveu outras obras nesse ínterim até, enfim, conseguir finalizar esta, uma realização tão crucial que, se não a tivesse terminado, não teria conseguido escrever mais nada, como disse em entrevistas.

O livro é dedicado ao “prisioneiro san byaku san ju go (335)”, que era seu pai. Archie Flanagan lutou na Segunda Guerra Mundial pelo exército australiano, tendo sido capturado pelos japoneses; foi um dos prisioneiros obrigados a trabalhar na construção da Ferrovia da Birmânia, que liga a Tailândia ao Myanmar (à época se chamava Birmânia), mais conhecida como Ferrovia da Morte, pela quantidade impressionante de prisioneiros mortos decorrente da escravidão sofrida.

Um escritor só consegue compelir o leitor a reler a própria alma se no processo da escrita tiver relido a sua e a obra transparecer isso, comunicar essa releitura

Talvez você não conheça essa ferrovia pelo nome, mas provavelmente já ouviu falar do filme clássico A Ponte do Rio Kwai, que tem a famosa música assobiada (confira nesse trecho) que desconfio seja até mais famosa que o filme. A história se passa quando da construção da ferrovia, assim como a do livro, em parte, também. Os maus tratos dos japoneses aos prisioneiros se tornaram conhecidos depois da guerra e Richard cresceu escutando o pai contando o que viveu. Por causa dessas lembranças, e com base nelas, criou seu romance, retratando aquela realidade e suas consequências traumáticas, por vezes trágicas, em vários personagens.

Mas não somente. Flanagan foi além dos relatos do pai, indo atrás de outros personagens, especialmente dos japoneses. Encontrou alguns, como Lee Hak Rae, que se disse arrependido do muito que fez, parecendo muito sincero, o que impactou Flanagan, cujo resultado aparece no livro, com os japoneses tratados não como vilões, mas seres humanos capazes de cometer maldades impensáveis, assim como tentar se redimir delas. Um trecho ilustra bem: “Nakamura não pareceu mais a Dorrigo Evans o oficial estranho, mas humano, com quem jogara baralho na noite anterior, nem o comandante duro, mas pragmático, com quem havia barganhado vidas naquela manhã, mas a força aterradora que se apodera de indivíduos, grupos, nações, e os curva e os deforma contra suas naturezas, contra seus julgamentos, e destrói tudo diante de si com um fatalismo impiedoso”.

Flanagan narrou em entrevistas que, ao contar para o pai o que Lee havia lhe dito, Archie ficou profundamente comovido e, dali por diante, parecia libertado do passado, acertado as contas com o que viveu. Por isso, na obra também há uma reflexão sobre a relação de felicidade e memória dos sofrimentos padecidos, com o narrador a certa altura dizendo que as pessoas felizes seriam aquelas que esqueceram o passado, enquanto as infelizes seriam aquelas que só teriam o passado. Sobre as infelizes, creio que faz muito sentido, mas a felicidade como esquecimento é apenas sofrimento anestesiado que, quando retornar, doerá mais.

Na releitura de sua alma, Flanagan parece buscar um sentido para o sofrimento. O de seu pai, os seus próprios, do humano em geral. Faz um retrato da maldade em várias de suas facetas, mas focando mais nas consequências do que em suas causas, mais em tentar compreender o ser humano capaz de maldades do que apontar culpados ou clamar por justiça para os males cometidos. À medida que a leitura avança, adentramos mais e mais pelo caminho estreito do sofrimento desnudado de significado, de sentido, de justificativa, também da ira consequente desejando justiça, reparação ou satisfação.

Em um documentário da BBC chamado Life After Death, feito sobre sua vida e especificamente sobre o livro, Flanagan levou o entrevistador ao túmulo do melhor amigo de seu pai, que morreu como prisioneiro na Birmânia. No livro, foi retratado no personagem Gardiner, cuja dor pela morte estúpida é quase palpável na leitura. No documentário, Flanagan se emociona diante do túmulo, chorando, desarmando o entrevistador, que só consegue lhe dar uns tapinhas de conforto no ombro. O que há nos confins desse caminho do sofrimento é a impotência recheada de tristeza, implorando por consolo. Haveria algum?

No mergulho que fazemos nas memórias de Dorrigo Evans, o protagonista da história, já na primeira frase do livro podemos antever a busca de Flanagan, justamente por esse consolo: “Por que no princípio das coisas sempre há luz?” Quando se chega ao fim do romance se compreende melhor a pergunta, pois a luz foi sendo perdida até desaparecer, restando as trevas do sofrimento e da falta de sentido, como dito nos últimos parágrafos sobre a chegada de Dorrigo ao fim da leitura de um livro que lia quando prisioneiro na guerra: “Mas não havia nada – as últimas páginas haviam sido arrancadas e usadas como papel higiênico ou fumadas, e não havia esperança nem alegria nem entendimento. Não existia a última página. O livro da sua vida simplesmente se interrompia. Havia apenas a lama abaixo dele e o céu imundo acima. Não haveria nada de paz nem esperança”.

O narrador, a certa altura, diz que as pessoas felizes seriam aquelas que esqueceram o passado, enquanto as infelizes seriam aquelas que só teriam o passado. Sobre as infelizes, creio que faz muito sentido, mas a felicidade como esquecimento é apenas sofrimento anestesiado que, quando retornar, doerá mais

Mas o livro não termina aí. Ainda há mais alguns parágrafos com Dorrigo relatando mais do horror vivido na Birmânia até que, ao voltar do banheiro em meio à lama infernal, avistou “um pequeno milagre”, uma flor carmesim. Aproximou-se dela, incrédulo, e seguiu adiante. Tal como esta flor, há pelo livro todo “pequenos milagres” à beira do caminho da leitura, especialmente os haikais de Baishô, cuja obra maior, O caminho estreito para os confins do Norte, Flanagan emprestou como título de seu romance. Não por acaso, claro. O último deles é:

Neste mundo
caminhamos no teto do inferno
contemplando flores

Terminada a leitura, não tenho como negar que me fez reler a alma, sentir-me como um irmão de desesperança a também buscar ansioso por algum sentido para o sofrimento, para o vazio. E quando relembro o título escolhido, descubro um Flanagan mais esperançoso do que aparenta, a contemplar mais a beleza das flores do que magnetizado pelo inferno dos nossos sofrimentos. “A beleza salvará o mundo”, teria dito Dostoievski. Richard Flanagan não me parece ter tanta esperança nessa salvação, mas creio que assinaria embaixo se a frase for “A beleza consolará o mundo”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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