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Gabriel LaBelle (Sam Fabelman) em cena de “Os Fabelmans”.
Gabriel LaBelle (Sam Fabelman) em cena de “Os Fabelmans”.| Foto: Divulgação

Quando soube que o mais recente filme de Spielberg seria autobiográfico, fiquei mais interessado. O diretor é daqueles cujo nome presente num projeto faz qualquer um prestar atenção. Mais ainda quando se trata de um filme sobre ele mesmo. Entretanto, passados uns 20 minutos do filme, passei a desconfiar do quão autobiográfico realmente seria.

(É óbvio que darei spoilers no que se seguirá)

Será possível que ele tenha crescido numa família tão “bobinha” assim? Por bobinha me refiro a uma ingenuidade coletiva inverossímil, associada a uma alienação generalizada do entorno. Parecia mais uma mistificação da vida familiar, uma forma defensiva de retratá-la à luz antecipada de um final feliz a tornar os dramas e erros do passado menos relevantes, com as maldades perdoáveis de antemão.

Não fosse um filme de Spielberg é provável que eu tivesse desistido, mas ao mesmo tempo me incomodava com minha impaciência. Havia algo ali que talvez não fosse apenas mistificação ou, ainda que sendo, teria algum propósito melhor. Será que o problema não era eu? Não estaria assistindo ao filme com um olhar cínico, que costumamos achar que é realista, desejando que um Nelson Rodrigues surgisse rasgando o véu da fantasia, revelando a realidade nua e crua da traidora, do corno etc.?

Os dramas familiares, as dores, as culpas, foram retratados, mas com um olhar amoroso, de perdão ao que parecia imperdoável, de compreensão do inaceitável, de gratidão até pelo que, se pudesse, jamais gostaria de ter vivido

Foi quando da cena da turma da escola assistindo ao filme de Sam – o protagonista alter-ego de Spielberg –, no baile anual, que me dei conta de que o problema estava mais em mim mesmo do que no filme. O descompasso entre a realidade e o que se mostrava na tela incomodou profundamente dois dos piás ali retratados. Um, por ver sua solidão e esquisitice escancarada; outro, por saber não ser o “herói” que parecia no filme, indo tirar satisfação com Sam depois, perguntando por que ele havia feito aquilo.

A resposta de Sam é reveladora. Ele não fez porque quis, nem sabia dizer por que, na verdade, apenas montou o filme conforme o que nasceu do seu olhar, da forma que a sequência daquelas cenas se montou em seu espírito. A forma que dá significado à realidade que quase sempre nos parece opaca e sem brilho, mas que a arte é capaz de revelar, expressando-a.

Ele não retratou o “herói” por ser um herói ou por querer conquistar sua amizade, até porque nem sequer gostava do piá, mas porque era isso que o filme “pedia”, revelando a possibilidade de o guri ser melhor do que vinha sendo. E a reação dele, de consciência culpada pelo comportamento que vinha adotando, mostrou que, no fundo, sabia disso.  Assim como Sam mostrou naquele rapaz o melhor nele ainda não atualizado, mostrou a solidão do outro não por vingança, mas por compaixão, sendo talvez o único a realmente enxergar o real problema do piá considerado problemático por todos na escola.

A resposta de Sam ao menino não deixa de ser a resposta de Spielberg ao que fez no filme com a história da sua família, de sua infância até o começo de sua vida adulta, quando deu os primeiros passos para se tornar o cineasta que se tornaria. Os dramas familiares, as dores, as culpas, foram retratados, mas com um olhar amoroso, de perdão ao que parecia imperdoável, de compreensão do inaceitável, de gratidão até pelo que, se pudesse, jamais gostaria de ter vivido. O sofrimento está lá, mas também o consolo, a esperança e o “final feliz” que não se vê, mas faz tudo ter valido a pena.

No fim das contas, é uma história de amor sobre todas as coisas. Por mais que a mãe amasse os filhos e o marido, amava mais o amante, sacrificando os demais amores no altar deste. Assim como o pai sacrificou o casamento por amar mais seu trabalho (não os empregos), aceitando a perda da esposa e a dor da solidão consequente, como fica nítido na magistral cena final dele vendo a foto da esposa feliz com o novo marido.

Assim como o amor de Sam/Spielberg pelo cinema era maior do que todas as coisas, cujos sacrifícios para poder se tornar quem se tornou foram aceitos, por mais dolorosos que fossem. A cena final dele conversando com John Ford, que lhe deu valiosa lição sobre como enquadrar o horizonte em seus filmes, imediatamente aplicada no enquadramento derradeiro, ajustando o horizonte enquanto Sam seguia seu destino, é de uma singeleza genial que completa a forma da obra, revelando o enquadramento no qual todas as histórias ali foram contadas: o do amor.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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