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Tom Verlaine, em 2014.
Tom Verlaine, em 2014.| Foto: Wikimedia Commons

No obituário de Tom Verlaine, falecido dias atrás, escrito por Patti Smith à New Yorker, a compositora iniciou com a imagem do acordar dele de madrugada pelo gotejar de água numa pia enferrujada. A partir dali, gota por gota, nota por nota, palavra por palavra, teria nascido Marquee Moon, a música mais famosa da seminal banda Television, que tinha Verlaine como seu frontman, e também dá título ao disco de estreia em 1977.

Sabendo disso, dificilmente você não escutará no riff de guitarra que inicia a música a reprodução desse gotejar de água, com todo o restante instalando o ouvinte na atmosfera daquela madrugada cujo silêncio, depois de quebrado pelo gotejar, é tomado pelos ruídos urbanos do exterior, da colmeia humana que forma toda grande cidade, e a angústia interior de quem, confrontado com a solidão e em meio à lembrança de como a escuridão havia se intensificado, escuta “outra coisa”.

Como ando a reler Só Garotos, da mesma Patti Smith, entendo por que ela deu tanta importância àquela experiência de Verlaine acordando com gotas d’água e transformando-as em arte. Porque foi assim, é assim, para ela também. Em seu livro, ela começa narrando um fato da sua infância, quando viu pela primeira vez um cisne, assim descrevendo a experiência:

“Sua visão gerou uma necessidade para a qual eu não tinha palavras, um desejo de falar do cisne, de dizer algo sobre sua brancura, a natureza explosiva de seu movimento e o lento bater de suas asas. O cisne mesclou-se ao céu. Fiz força para encontrar palavras que descrevessem minha própria ideia sobre ele. ‘Cisne’, repeti, não totalmente satisfeita, e senti uma pontada, uma saudade curiosa, imperceptível aos passantes, à minha mãe, às árvores ou às nuvens.”

Essa pontada, essa “saudade curiosa”, é também aquela “outra coisa” ouvida por Verlaine, uma impressão profunda que todo artista precisa expressar, dando forma, não à experiência em si, mas ao seu significado. Desde seu primeiro disco, o igualmente seminal Horses, de 1975, Patti Smith procurou expressar a experiência do próprio criar artístico, especialmente nas últimas 3 músicas do álbum.

Em Break It Up, tendo Jim Morrison como figura inspiradora, ela canta o artista assim se tornando como um Prometeu se libertando do que o acorrentava para, em Land: Horses/Land of a Thousand Dances/La Mer (De), entregar-se àquela “outra coisa”, que aqui é o próprio rock’n roll que o levará mais alto, para um lugar onde só há um mar de possibilidades cuja experiência terminará com ele acordando assim: “em meio aos lençóis há um homem / dançando em torno de uma simples canção de rock’n roll”, que é a própria música sendo ouvida aqui, o resultado criativo de algumas “gotas d’água” na vida de Patti.

Esse processo criativo volta a ser expressado em outros momentos, como em Up There Down There, de 1988. Quando ela a compunha, chegou a notícia da morte de Andy Warhol. A “gota d’água” despertou nela a lembrança de outra, a do cisne da infância, que ela acrescentou à música, completando uma letra que volta a falar, com mais clareza, sobre o lugar da criatividade artística, não mais como uma “terra” que seria um “oceano de possibilidades”, como em Horses, mas uma: “bola de fogo / Alguns chamam de espírito / Alguns chamam de sol / Suas energias não são para alugar / Elas servem ao homem, servem a todos”.

A morte, por razões óbvias, talvez seja a maior das “gotas d’água” na vida. A música que encerra o disco Horses, Elegie, é sobre isso, sobre a morte de Jimmy Hendrix. Mas ali a morte pesa como um fato que desorienta, que machuca, que faz a memória rodopiar com lembranças do falecido, não conseguindo expressar mais do que a tristeza de não tê-lo mais aqui.

As mortes de Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, deixaram uma marca profunda em Patti Smith, mas não se comparam às que deixariam as mortes de Robert Mapplethorpe em 1989, e de seu marido, Fred Smith, em 1994, cantada em Farewell Reel. Robert foi seu primeiro amor, eterno amigo e o parceiro nos anos 1970 de auto-descoberta dos artistas que ambos se tornaram. Antes de morrer, ela prometeu a Robert que escreveria sobre a história deles, mas só conseguiu fazer isso 20 anos depois, com Só Garotos.

A morte, por razões óbvias, talvez seja a maior das “gotas d’água” na vida.

Antes, ela havia feito uma música para ele, chamada Memorial Song, cuja versão ao vivo vale a pena ser escutada, pois se vê o esforço dela de tentar expressar mais, alguma “outra coisa”, sem conseguir. Mesmo em Só Garotos, a expressão não alcança toda a impressão que a vida compartilhada com Robert deixou, muito menos o significado de sua morte, como revela a certa altura do livro: “Por que não consigo escrever algo que faça despertar os mortos? Essa busca é o que arde mais fundo.”

Essa busca que jamais termina para o artista, cujos resultados, cujos encontros, descobertas e criações, tornam-se também despertadores de outros artistas, como as gotas d’água na pia enferrujada de Tom Verlaine. Para ficar em um exemplo. The Edge, guitarrista do U2, assim se pronunciou sobre a morte de Verlaine: “Tom Verlaine teve uma imensa influência sobre mim quando era um jovem guitarrista. Television me mostrou quão singular a guitarra pode soar se tocada com o espírito da inventividade. Aquele insight tem me guiado desde então. Tom foi uma verdadeira lenda. Sua música continuará viva.”

O obituário de Verlaine escrito por Patti Smith é, em si, uma pequena obra de arte, uma expressão amorosa sobre a profunda impressão que Tom lhe deixou, dos parceiros musicais e amigos que se tornaram, tão próximos que quem cuidou de Tom nos seus últimos momentos de vida foram os filhos de Patti. Para finalizar o obituário, Patti retorna a uma daquelas “gotas d’água” que viveram juntos:

“Em suas últimas horas, vendo-o dormir, viajei no tempo. Estávamos no apartamento e ele cortou meu cabelo, e algumas mechas ficaram espetadas para um lado e para o outro, então ele me chamou de Winghead (cabeça de asa). Nos anos seguintes, simplesmente Wing (Asa). Mesmo quando ficamos mais velhos, sempre Wing. E ele, o menino que nunca cresceu, subiu ao alto do Ômega, um filamento dourado na vibrante luz violeta.”

No mesmo disco que contém Marquee Moon, há também Guiding Lights, na qual Verlaine se pergunta se ele pertence à noite, terminando cantando: “É tempo de sentar no trono / Você já o viu antes / Mas é sempre novo / Então preste atenção / E veja quem passou / Nunca mais / Para enfrentar esta noite / Luz guia, luz guia / guiando através dessas noites”.

Todas obra de arte digna do nome, pode (diria que até deve) fazer por seus “consumidores” o mesmo que as impressões que originaram aquelas expressões artísticas fizeram por seus criadores, tornando-se luzes a nos guiar através de nossas noites, como estrelas a significar mais do que uma gota d’água ou um cisne ou um corte de cabelo bem esquisito ou até a morte. E só assim para conseguirmos compreender o que Patti quis dizer quando escreveu em seu Instagram nesta semana, pensando em Tom, que o luto não seria uma aflição, mas um privilégio.

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