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Paul McCartney durante show da turnê Got Back.
Paul McCartney durante show da turnê Got Back.| Foto: Facebook/Paul McCartney/página oficial

Luto não tem fim. Só se torna uma tortura para quem tenta encerrá-lo, “curar-se” da saudade. Ao que aceita, vive e revive, o luto o transforma, educando no amor, que nunca morre. Quando fala da morte dos seus, já não é mais com nostalgia a entediar os que preferiam ver o enlutado calar-se trancado em sua dor, mas a própria vida solfejando depois que a canção terminou.

Se você perdeu alguém há muito tempo, desconfio que... não, não desconfio, tenho certeza. Tenho certeza de que evita dar voz ao seu luto. Talvez até se culpe por “ainda sentir”. Nas datas comemorativas, cumpre o ritual social de visitar brevemente o cemitério, pedir para rezar uma missa,  mandar foto no grupo da família no WhatsApp, coisas assim, mas guarda para si as lágrimas que fazem novas todas as dores da perda.

Escrevo no dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, de quem meu pai, que também faria aniversário neste dia, era devoto. No próximo dia 28 fará dez anos de seu falecimento. Como precisei escrever a respeito disso nesses anos todos... Perdi as contas de quantos textos, quantas entradas em diário, quantas conversas em oração.

O vício na saudade se torna a virtude da fé no reencontro que já acontece. Porque, se há eternidade, ela se vive no aqui e agora sem fim, contendo em si todo passado e todo futuro

À morte dele se seguiram outras, mais recentes, cujas ausências, porém, foram se transformando em uma estranha comunhão de presenças, como se fosse uma festa a que os convidados vão chegando aos poucos e, embora você não possa participar, não ainda, tem a permissão de espiar. E sorrir.

Fiquei viciado na saudade. E me dei conta disso, desse vício, no sábado passado, quando enfim assisti ao vivo a um show da Legião Urbana, ou do que restou dela. Foi minha banda preferida da adolescência, mas nunca consegui ir a um show. E como este ainda seria, foi, perto da minha escola, quantas memórias viriam...

Temi fosse me comover de forma ridícula. Mas foi o contrário. Não houve nostalgia, se a entendemos como um estado de tristeza ou melancolia. Não houve um tsunami de lembranças, um revisitar do passado, mas uma atualização do presente. Houve sorrisos, não choros. Nenhuma música era mais “daquele tempo”, porque todas fazem parte do meu tempo, aquele que Deus guarda e solfeja quando parece que terminou. E até lá vou cantarolando de improviso.

Há felicidade, entende? De verdade, felicidade. E quando o guitarrista, Dado, cantou Índios, caiu a ficha que eu estava curado do vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que ainda não vi. Ou perdi. Desses paradoxos na vida: o vício na saudade se torna a virtude da fé no reencontro que já acontece. Porque, se há eternidade, ela se vive no aqui e agora sem fim, contendo em si todo passado e todo futuro.

Meu pai está sentado logo atrás de mim, lendo enquanto digito. Sinto o calor da sua presença, seu respirar, mas principalmente sei qual é seu olhar e sorriso, que dizem tudo, embora eu não me volte para vê-lo. Não preciso, estou vendo. Ele está ansioso. Hoje iremos ao show do Paul McCartney, dessas coincidências que gosto de me recusar a acreditar que seja coincidência.

Como o setlist tem sido quase o mesmo em todas as cidades, sei que Paul irá encerrar com a “trilogia” final de Abbey Road, que chamo de “trilogia do luto”. Porque são sobre fim, despedida e o sentido do que foi vivido. São as últimas músicas dos Beatles. Embora o disco Let It Be tenha sido lançado depois, foi gravado antes de Abbey Road. Então, Golden Slumbers, Carry That Weight e The End expressam a despedida que sabiam que estava acontecendo.

Com o tempo a morte se revela outra coisa, dando real medida ao amor, que é como termina The End: “E no fim, o amor que você recebe é igual ao amor que você doa”

Once there was a way, to get back homeward / Once there was a way, to get back home”, Paul constata na triste e contemplativa Golden Slumbers: não há como retornar, voltar para casa, continuar a viver o que se viveu. Acabou. E o peso dessa perda, do luto, será carregado por muito tempo, “oh boy” se será, como canta em Carry That Weight. Mas com o tempo a morte se revela outra coisa, dando real medida ao amor, que é como termina The End: “E no fim, o amor que você recebe é igual ao amor que você doa”. É sobre isso. Eis porque “viciei” na saudade.

Levaremos meu caçula ao show, que pouco tem para se lembrar do avô. Tinha 2 anos e pouco quando morreu. Ainda assim, é como se o tivesse visto ontem. Porque é assim que o luto funciona. Sei que meu pai provavelmente teria comprado os ingressos só para ver a felicidade do neto. Meu filho riria do jeito desajeitado dele de bater palmas fora de compasso. E no encantamento do Henrique sei que encontrarei o colo do meu pai.

P.S(how).: Ob-la-di, ob-la-da / Life goes on, brah! / La, la, how the life goes on…

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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