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Não tinha ainda formado um juízo sobre o livro. Não podia negar que havia gostado, apesar de algumas supostas falhas que me incomodavam durante a leitura e que sempre considerei fatais em literatura. Mas, no caso, não estavam sendo e fiquei a meditar: “esse livro tem tudo para ser ruim, mas não é. Por quê?”. Assim pensando, fui ao encontro de um grupo de leitura que conduzo em que lemos Claridade, o primeiro romance de Renato Moraes lançado agora em 2018, editado pela Record. Já sabia que algumas pessoas do grupo não haviam gostado do livro, mas não fazia noção do quanto.

Quando soube que uma das integrantes, muito culta e inteligente, havia detestado tanto a obra a ponto de ligar para a editora para saber como teria sido possível terem editado um livro desses, também ligando para um crítico indicado pela editora, fiquei estupefato. Porque a reação foi exatamente a mesma de vários personagens da história contra o protagonista Ricardo, como sua ex-namorada, Cláudia: “Senti pelo Ricardo uma ojeriza enorme e tive uma vontade louca de ofendê-lo, de ridicularizá-lo, até de dar uns tabefes nele. (…) Estava doida para escandalizá-lo, fazê-lo ficar vermelho. Queria berrar para todo mundo até onde eu havia chegado, e que no fundo o Ricardo era um idiota que vivia em um mundo irreal, um carola ridículo, alienado”.

O intrigante é que Ricardo não fez nem disse nada que merecesse tamanho repúdio na história. Nem mesmo o que achavam que ele havia feito de errado, envolver-se com uma mulher casada, muito tempo depois de terminado o relacionamento com a ex, mereceria tamanha repulsa como recebeu de vários personagens. Essa desproporção impressiona o leitor, como impressiona a reação da leitora acima; afinal, uma coisa é falar mal de livros que detestamos, e outra, muito diferente, é sentir “uma ojeriza enorme” a ponto de se incomodar em ir atrás da editora para questioná-la. Quando um livro causa uma reação que é precisamente aquela retratada em sua história, então isso se torna menos um julgamento desfavorável do que um de seus efeitos que, ao parecer desmerecê-la, antes a valida, revelando, no fim das contas, uma real grandeza da obra. Para compreendê-la, preciso antes entender o que em Ricardo tanto incomodava a vários dos personagens.

Ricardo era um homem bom. Não siga adiante na leitura, leitor. Fique uns segundos comigo diante dessa palavra: bom. Flannery O’Connor, uma das maiores escritoras do século 20, tem um de seus contos mais famosos intitulado “É difícil encontrar um homem bom” e o retrato que dá do seu e do nosso tempo com toda a sua obra é precisamente o da raridade de encontrarmos homens bons por aí, mesmo na ficção. E é verdade. Na literatura brasileira inteira, por exemplo, são raríssimos os personagens genuinamente bons. Quase sempre é uma bondade por consequência, que surge depois de arrependimentos, mudanças de vida, nunca como uma condição normal do personagem, que é o caso de Ricardo. O único equivalente que consigo lembrar são alguns dos personagens criados por José Geraldo Vieira, como Teodoro, em A Mulher Que Fugiu de Sodoma.

Por isso, em um tempo em que a bondade rareia, sua presença às claras em alguém como Ricardo é esquisita, só pode incomodar, até ofender. Um frade dominicano chamado Henri Lacordaire certa vez disse: “Não é o gênio, nem a glória, nem o amor que medem a elevação da alma: é a bondade”. Não cito o frade à toa. Também ele sofreu repúdio semelhante: se não por sua bondade, certamente por deixar às claras o que preferimos permaneça oculto de nossos corações: foi eleito para o parlamento francês em meados do século 19 e foi a todas as sessões vestido como frade, o que enfurecia seus adversários muito mais do que o conteúdo dos seus discursos.

Muito da possível repulsa ao livro de Renato Moraes advém ou advirá também de algo análogo, pois o livro coloca no centro e como causa da bondade de Ricardo seu catolicismo (mas sem proselitismo religioso, graças a Deus!). Daí porque sua ex-namorada disse que ele “era um idiota que vivia em um mundo irreal, um carola ridículo, alienado”. Aos olhos mundanos de hoje um homem como Ricardo parece mesmo irreal. Seria possível existir alguém assim na vida real? Se impossível, então todo o livro se torna uma forçação de barra sem fim, uma provável tentativa tosca de “evangelizar” os leitores desavisados. Mas em literatura a verossimilhança se dá no contexto da obra; do contrário, jamais aceitaríamos contos de fadas e histórias fantásticas como O Pequeno Príncipe. E aí não tem cabimento algum considerar Ricardo como irreal dentro da história contada. Pode nos parecer incrível fora da ficção, mas é perfeitamente plausível dentro dela. E nesse caso a dificuldade do leitor em lidar com essa impressão ou sensação de inverossimilhança ocorre por não estar acostumado ou até informado da possibilidade de existência de pessoas assim na vida real, não porque o livro é inverossímil. No fim das contas, a obra acaba lhe servindo como diagnóstico da sua própria “mundanidade”.

Mas meu incômodo com o livro não decorria da bondade escancarada de Ricardo. A princípio achei fosse com os diálogos em geral, cuja construção tornava todos os personagens parecidos, falando de forma muito semelhante. Por exemplo, se pegarmos uma das falas de Maurício, um dos amigos de Ricardo, e colocarmos no lugar de uma fala de Conrado, outro amigo, não fará diferença alguma, parecendo a mesma pessoa. À medida que ia lendo fui, então, considerando que os diálogos eram assim porque os próprios personagens pouco se diferenciavam, sendo muito mais satélites da Bondade, seja por encarná-la, como o próprio Ricardo, sua noiva falecida e seus irmãos membros do Opus Dei, seja por dela estarem distantes, como os “inimigos” de Ricardo.

O próprio narrador em terceira pessoa também se enquadra nisso, cuja voz não se diferenciava da de Ricardo, sendo incapaz de falar mal dos “maus” personagens, mais indicando seus erros e pecados que os retratando, assim como também não ousando dar fervor aos bons, como Georges Bernanos fazia com seus personagens-santos. Com isso, toda a leitura só pode ser feita na claridade dessa Bondade cujo desviar do olhar deixará o livro sem nada, absolutamente nada. Isso seria bom ou ruim? Literariamente, ou esteticamente, provavelmente será considerado não propriamente ruim, mas fraco, pois isso torna os personagens todos muito planos, pouco profundos, com a história seguindo sem aquela emoção bernanosiana que parece tão necessária para histórias assim, aquela emoção que em todo escrito de santo sempre se faz presente, seja para louvar a Deus sobre todas as coisas, seja para desmerecer a si próprio por ser indigno de tamanha graça. Há uma ordinariedade na bondade de Claridade que talvez só comova quem dela já participe, não quem a ela precise ser atraído.

Digo “talvez” porque há um grande momento no livro capaz de elevar sua pouca literatura à altura da Bondade retratada. É quando Catarina, a outra protagonista da história, uma megerinha que será domada não pela virilidade bruta de um Petruchio, mas pela bondade gentil de um Ricardo, se desencanta com este por lhe parecer não ser o que parecia. Ser o quê? Justamente o homem inteiramente bom que ele parecia ser antes de “descobrirem” que supostamente também cometia seus pecados por aí, como qualquer outro. “Homem é tudo igual”, já escutou isso, caro leitor? Ou já disse isso, cara leitora? Catarina não disse, mas tratou Ricardo como se fosse. E nesse momento o leitor, que até então mais acompanhava a história do que a vivia, passa a sofrer pela injustiça cometida por Catarina, mas também a se irritar com Ricardo, porque ninguém pode ser tão bom assim a ponto de deixarem lhe achincalhar como achincalhavam com uma mentira.

Eis aí aquela reação de ojeriza à bondade nascendo no leitor. Quando nos deparamos com bondade genuína, nossa maldade a transforma em “trouxidão”, ou seja, em coisa de gente trouxa, otária. Por isso, dar-se conta dessa repulsa é, no mesmo ato, diagnosticar a baixeza da própria alma, constatando quão distante se está de ser verdadeiramente bom. Conseguir esse efeito só a boa literatura consegue. E só nesses casos se pode dizer que estamos diante de uma obra que alimenta a chamada “imaginação moral”, que é muito mal compreendida nos meios conservadores que tanto falam disso, e tem mais a ver com o provérbio de Salomão que diz que as palavras convencem, mas o exemplo arrasta. O exemplo de Ricardo arrastou Catarina, Maurício e outros tantos. O livro de Renato Moraes pode até não convencer com suas palavras, mas é capaz de plantar na alma do leitor o exemplo que lhe falta para ser arrastado para a Bondade.

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