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Era um dia típico de Curitiba, de um outono desfeito em inverno, com o céu límpido e iluminado, de um azul profundo e distante.
Caminhava pela rua XV quando avistei, sentado num dos bancos da Boca Maldita, um sujeito de aparência anacrônica, terno bem cortado, cabelos grisalhos penteados para trás, fumando um cigarro com gestos teatrais.
Aproximei-me por curiosidade de cronista, essa mania que faz enxergar presenças onde outros já não lembram do que viram.
— Tolentino? — perguntei, num impulso absurdo para mim.
O homem virou-se com um sorriso irônico, expelindo a fumaça em círculos perfeitos.
— Em carne e osso seria um exagero, não, Escorsim? — respondeu com voz grave e dicção impecável. — Digamos que em fumaça e memória.
Sentei-me ao seu lado, entre incrédulo e fascinado. Minha mente racional dizia que estava diante de um ator ou de um lunático com talento. Mas algo na precisão dos gestos, na elegância estudada e no olhar de quem não está mais entre a seara e a colheita me fez suspender a descrença.
— Você sabe quem eu sou? — perguntei, tentando ganhar tempo enquanto processava aquele encontro impossível.
— Um apanhador de desperdícios, como todos os cronistas dignos do ofício — respondeu, olhando não para mim, mas através de mim. Ri, nervoso.
— E o que faz o fantasma de Bruno Tolentino em Curitiba? Veio assombrar algum poeta concretino perdido por aqui?
Deu uma gargalhada sincera.
— Vim ver o que fizeram com meu País. Quinze anos depois da minha partida, queria conferir se valeu a pena tanto combate, tanta briga, tanto grito no deserto.
Olhei ao redor. A Boca Maldita fervilhava com sua fauna habitual: aposentados discutindo política, estudantes com fones de ouvido, vendedores ambulantes, executivos apressados. A Curitiba de sempre, pensei. A amostra valeria pelo Brasil todo?
— E o que acha do que vê? — perguntei, já entrando no jogo, fosse qual fosse.
Tolentino deu uma tragada profunda, como se quisesse consumir mais do que apenas o cigarro.
— Vejo um País que sequestrou a si mesmo — disse, finalmente. — Quando eu brigava com aqueles homúnculos tropicalistas, com aqueles críticos domesticados, com aquela intelligentsia de araque, pelo menos havia um campo de batalha definido. Hoje? — Fez um gesto amplo com a mão que segurava o cigarro, desenhando arabescos de fumaça no ar. — Hoje vocês terceirizaram até mesmo as brigas. Algoritmos decidem quem odeia quem.
Pensei na mesma coisa que você está pensando, leitor.
— Mas temos uma direita cultural agora — argumentei. — Você foi uma espécie de profeta disso, não? Hoje há quem cite Platão, você, quem defenda os clássicos, quem...
— Quem cite sem ter lido — interrompeu, com aquele desprezo aristocrático típico dele. — Vocês confundem citação com conhecimento, polêmica com pensamento. Eu não queria direita nenhuma, nem discípulos, queria leitores e escritores. Não queria seguidores, queria pensadores. Não queria memistas, queria artistas.
Um senhor que passava olhou-nos com curiosidade. Devia parecer estranho, um homem de meia-idade conversando sozinho num banco da Boca Maldita. Ou com a fumaça que não se dissipava no ar.
— Mas o senhor não ficaria feliz em ver Caetano Veloso sendo criticado abertamente? Em ver a hegemonia cultural da esquerda sendo questionada? Em ver...
— Em ver o quê? — cortou, impaciente. — Zé Manés de direita substituindo Zé Manés de esquerda? A mesma mediocridade com sinal trocado? Eu não lutava contra pessoas, lutava contra a estupidez. E a estupidez, meu caro, é ambidestra.
Fiquei em silêncio, pensando em como transformar aquele encontro impossível em uma crônica que não me fizesse parecer completamente louco. Ou mais Zé Mané do que sou.
— Sabe o que mais me entristece? — continuou o fantasma, olhando para um grupo de adolescentes que passava, todos de olhos fixos nas pequenas telas em suas mãos. — Não é que tenham sequestrado a inteligência brasileira. É que a tenham convencido a se entregar voluntariamente. Vocês não precisam de ditadores; tiranizam-se mutuamente. E fazem isso acreditando lutar pela liberdade.
Um vento súbito varreu a praça, levantando folhas secas e embalagens de fast-food. Tolentino observou o pequeno redemoinho com interesse.
— Veja — apontou para o lixo que dançava no ar. — Eis a cultura brasileira contemporânea. Restos de consumo rápido, girando sem direção, acreditando estar dançando quando apenas está sendo levada.
— O senhor sempre foi apocalíptico — respondi, tentando alguma defesa. — Mas temos coisas boas também. Temos mais acesso à informação, mais vozes, mais...
— Mais ruído, menos música — completou, com um suspiro. — Mais textos, menos leitura. Mais opiniões, menos pensamento. Vocês confundem quantidade com qualidade, acesso com conhecimento. Democratizaram a ignorância e chamam isso de progresso.
Percebi que algumas pessoas nos observavam. Um fantasma polêmico na Boca Maldita não era exatamente discreto.
— Mas o senhor, que viveu uma vida de Jekyll e Hyde, não vê uma “inexorável positividade do real” mesmo nesse caos? — arrisquei, citando o Padre Giussani, figura que sabia ser central em sua conversão a Cristo. — Não há uma verdade que se impõe, mesmo na desordem?
Tolentino me olhou com uma intensidade que fez o fantasma ser eu.
— Ah, meu caro, você leu... A inexorável positividade do real... sim, ela está aí. Mas não é uma ideia, é uma Presença. E essa Presença, ela constrange. - fez uma pausa, e o silêncio entre nós pareceu mais denso que o ar. - O problema é que a maioria não quer ser constrangida. Não quer a Presença. Prefere a “dama ideia”, seja ela vermelha, preta ou azul, porque a ideia não te olha nos olhos. A ideia não te exige ser quem você é. A ideia te permite ser uma caricatura de si mesmo. E o Brasil, meu caro, está cheio de caricaturas.
Ele se levantou, ajustando o paletó com um gesto elegante. Despediu-se e começou a se afastar, sua figura se tornando gradualmente mais translúcida. Notei um livro no banco onde estivera sentado. Era uma edição gasta de "As Horas de Katharina”, seu livro meu predileto. Uma dedicatória manuscrita: "O Senhor prometera nos compensar os anos que a legião dos gafanhotos devorara. Ele cumpriu a promessa.”
O sol da tarde começava a dourar os prédios em torno. O cheiro de café misturava-se ao do cigarro que ainda se sentia no ar. Fiquei ali, observando o ir e vir das pessoas, cada uma imersa no redemoinho de seus pensamentos, enfrentando seus fantasmas. A cena era tão sugestiva que sorri, apanhando mais alguns desperdícios, antes que tudo se dissipasse como fumaça.




