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A cantora Rita Lee integrou a banda Os Mutantes e se tornou a maior roqueira do país
A cantora Rita Lee integrou a banda Os Mutantes e se tornou a maior roqueira do país.| Foto: Divulgação/Editora Globo

“No ano de 2020, como será que vai estar o Brasil? Será que vai ter floresta, pelo menos uma? Será que vai ter um índio, dois, uma tribozinha? Será que vão sobreviver? Será que a gente aguenta? De repente, os trombadinhas crescem e viram políticos, né?”

Essas perguntas foram feitas por Rita Lee em 1991, durante a execução de Perto do Fogo, composição de Cazuza, no seu show Bossa ’N Roll, gravado ao vivo e depois transformado em disco. Ela mesma respondeu na sequência, retomando a música: “Vai ser tudo igual / Tudo, tudo igual”. Rita Lee também era profeta. Coisas da vida...

Falar nisso, 1991 foi um ano mágico na música. Vieram ao mundo discos como Nevermind, Ten, Black Album, Blood Sugar Sex Magik, Achtung Baby e Out Of Time, dentre outros. Álbuns tão famosos que dispensam até de dizer os nomes das bandas para saber de quem são. Mas, na minha vida, o disco mais importante daquele ano foi Bossa ’N Roll, de Rita Lee.

Rita Lee foi uma das minhas coisas da vida, daquelas que deixam mais do que marcas, mas marcos que quando revisitados encontramos mais de nós mesmos do que sabíamos que éramos na época

Não, não é nenhuma obra-prima, mas para um piá de 15 anos à época, sonhando em fazer parte de uma banda e só conseguindo tocar violão sozinho em casa, escutar Rita Lee e um parceiro tocando apenas seus violões, sem mais nenhum instrumento ou maior produção, gravado ao vivo, era, foi inspirador. De repente, o impossível se tornava verossímil. Qualquer violonista amador conseguia tocar aquelas versões em casa, tal como executadas no disco. A distância, para mim, entre sonho e realidade havia encurtado.

Não, não me tornei músico, embora tenha participado de bandas e tocado “na noite” por aí, mas o que me importa aí não é isso, mas o quanto Rita Lee foi uma das minhas coisas da vida, daquelas que deixam mais do que marcas, mas marcos que quando revisitados encontramos mais de nós mesmos do que sabíamos que éramos na época.

Coisas da Vida, aliás, é do disco Entrada e Bandeiras, de 1976, ano em que nasci; na música de abertura do álbum, Corista de Rock, Rita canta: “O que eu era ou sou por enquanto / É tudo aquilo que eu digo e canto / Com um pouco de espanto”. Nunca deixou de ser assim, tanto que em várias letras algo disso se repete, como em História Sem Fim, do álbum 3001, lançado em 2000, em que canta: “Quem sou eu pra onde vou? / A velha pergunta de qualquer mortal / Talvez seja verdade / Uma bela mentira / A resposta que sempre nunca vou saber”. E seguiu assim no documentário sobre sua vida, Ovelha Negra, de 2007, em que terminou falando: “Continuo sem saber nada a meu respeito”.

Mas talvez fosse tudo jogo de cena. Acho até que era, já que Rita sabia como poucos mascarar seus mistérios ao revelá-los, como quando contou do abuso sexual que sofreu na infância. Está na sua autobiografia, na qual confessou isso como se não fosse nada de mais, no mesmo tom e importância de coisas da vida menores.

Gosto de uma música do disco Balacobaco, de 2003, chamada Eu e mim: “No espelho não é eu, sou mim / Não conheço mim, mas sei quem é eu, sei sim / Eu é cara-metade, mim sou inteira / Quando mim nasceu, eu chorou, chorou / Eu e mim se dividem numa só certeza / Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma”. E esse mais eu do que eu mesma era aquela que foi tudo o que disse e cantou, com um pouco de espanto, com um muito de ironia.

Por isso é possível saber como envelhecer não foi fácil para Rita. Em seu último disco, Reza, de 2012, há queixas como raras vezes fez, como em Vidinha e, especialmente, Tô um Lixo: “Tô um Lixo: Parei de fumar / Parei de jogar / Parei de ser aquele / Ser cafajeste / Aquela peste / Nem banho tomo mais / Trabalho tanto faz / A cabeça tá um jazz / Eu vivo pelos cantos feito bicho / Eu tô um lixo”.

No fim de todas essas coisas da vida, Rita Lee viveu o que cantou, cantou o que viveu

Mas em entrevista ao Fantástico, em 2020, Rita revelou que, apesar do sofrimento da velhice, somado ao da doença que por fim a matou, acertou as contas com seu eu e mim: “Eu gosto das minhas rugas, respeito minhas pelancas. Eu aprendi a gostar de mim”. Coisas da vida...

Sua última música lançada, em 2021, foi Change, cantada em francês e inglês: “Mude a pergunta: Por quê? / Mude a pergunta: Por que não? / Porque a vida não é desse jeito, nem daquele / Então você se pergunta e rapidamente diz que sim / Perdido em sua mente, você pode encontrar o sentido da vida”. Foi uma bela despedida, ao melhor estilo Rita, com leveza, bom humor e sagacidade. No fim de todas essas coisas da vida, viveu o que cantou, cantou o que viveu. E por ter sido assim fez um monte de gente feliz.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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