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A versão do jogo “Batatinha frita 1, 2, 3” na série “Round 6”, da Netflix.
A versão do jogo “Batatinha frita 1, 2, 3” na série “Round 6”, da Netflix.| Foto: Divulgação/Netflix

Eu estava feliz da vida ignorando completamente a histeria e os falsos amores em torno da febre do momento, a série sul-coreana Round 6, que parece ser o maior sucesso da história da Netflix, quando descobri que meu caçula de 10 anos tinha assistido. Lá fui eu dar atenção, afinal, vai que a histeria tem alguma razão de ser?

Mas não tem, ao menos não no que andam gritando por aí. A violência do seriado não é maior que a de outras inúmeras séries e filmes disponíveis por todo lado, também em videogames como Fortnite, por exemplo, que meus filhos jogam e é outra febre entre a piazadacuja estética e ideia de “resta um”, aliás, é reproduzida na obra. Desconfio que esta seja, inclusive, uma das maiores razões para o sucesso do seriado.

E, convenhamos, já vão aí décadas de jogos de videogame violentos e não veio nenhuma pandemia de violência maior do que havia antes. Então, não dá para saltar assim em linha reta para a conclusão preguiçosa associando a influência desses jogos e filmes e seriados na violência da vida real. É preciso bem mais do que a histeria para fundamentar algo assim.

Entre brigar transformando o ato de ver certo filme ou série num grande mal feito e conversar sem fazer do fato um crime ou tragédia, esclarecendo a moral da história, fico com a segunda opção

E haveria algo mais em Round 6 que me obrigaria a assumir aquele papel chato que os pais volta e meia têm de assumir para tentar evitar um mal maior? Em geral, os pais acham que proibindo os filhos de assistirem bobagens estariam defendendo sua inocência. Em alguma medida, protege mesmo. Mas também acho que o máximo que conseguimos é adiar o estrago que, numa época como a nossa, com tantas alternativas para acessar bobagens, torna-se questão de tempo para os filhos acessarem.

Daí porque é mais importante saber lidar quando assistem o que não deviam. Entre brigar transformando o ato num grande mal feito e conversar sem fazer do fato um crime ou tragédia, esclarecendo a moral da história, fico com a segunda opção. Para tanto, é preciso duas coisas: 1. assistir ao que assistiram e 2. ter consciência de que esse tipo de conversa serve mais para apaziguar nossa consciência do que consertar o estrago, coisa que não temos como saber com certeza.

Voltando à pergunta: há algo de preocupante em Round 6 que me levaria a conversar mais seriamente com meu filho? Talvez, a depender de como ele havia recepcionado o drama moral que está na essência da história. Não se trata de entender a trama, mas de compreender o que nela está, literalmente, em jogo. E a partir daqui fique avisado que haverá spoilers.

Johan Huizinga, em seu clássico Homo Ludens, já demonstrou o quanto o lúdico é parte central da cultura humana, sendo o jogo também um instrumento pedagógico. No seriado, é possível enxergar isso claramente, pois o fato de os jogos serem de vida ou morte escancaram a realidade moral das escolhas e decisões dos jogadores, todos moralmente deficientes até ali, ganhando oportunidade de se tornarem moralmente melhores. Ou ainda piores.

No jogo das bolinhas de gude isso fica mais evidente. Os dois personagens que chegarão à final parecem que estão a melhorar por causa de suas escolhas, tentando agir com compaixão e ajuda mútua, mas, vendo que podem perder ali, acabam escolhendo enganar seus parceiros para seguir em frente. Por outro lado, há também uma personagem que prefere perder e sacrificar sua vida para que sua parceira tenha chance de vencer. Morreu de forma digna.

O drama moral é só o que interessa, na verdade, em Round 6, tanto que a disputa final é decidida assim, com um sacrifício pessoal do derrotado antes que o vencedor se recusasse a vencer. É também a natureza do jogo proposto pelo criador ao vencedor no último episódio, apostando que ninguém socorreria um bêbado na rua, que era também uma forma de “provar” que o ser humano seria egoísta mesmo quando não enfrenta uma situação de vida ou morte que justificaria escolher antes a si do que se sacrificar pelo outro.

O fato de os jogos serem de vida ou morte escancaram a realidade moral das escolhas e decisões dos jogadores, todos moralmente deficientes até ali, ganhando oportunidade de se tornarem moralmente melhores. Ou ainda piores

Perdeu a aposta, mas isso não significa que o protagonista da história venceu. Ele seguiu lutando com o seu drama moral, pois não conseguia fazer uso do dinheiro ganho pela consciência culpada que lhe pesava. No fim, quando parecia que estava saindo do drama como um homem melhor, cumprindo as promessas feitas a outros jogadores que morreram e voltando para sua filha, novo dilema moral surgiu ao descobrir que outra edição do jogo estava prestes a acontecer. E agora? Pegar o avião e ir ver sua filha ou tentar ser heroico como forma de compensação da culpa? Decidiu pela segunda opção.

Nessa hora, meu caçula estava na sala assistindo comigo e, sem que eu precisasse dizer qualquer coisa, falou que não havia gostado desse fim. Perguntei a razão, ao que me respondeu: “Ele deveria ter ido ficar com a filha”. Apenas sorri, entre aliviado e orgulhoso. Não será preciso ter “aquela conversa”: o menino está com o coração no lugar certo. E esta é a moral de toda e qualquer história: nos levar, devolver ou não tirar do lugar onde nosso coração tem de estar para ser.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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