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Imagem ilustrativa.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Escrevia sobre o filme O Som da Liberdade quando, em uma pausa, atravessou-me o olhar esta manchete: “Juiz dá voz de prisão para mãe que se expressou contra acusado de matar o filho dela durante audiência em MT”. Seria click bait? Cliquei. Não era.

No corpo da notícia, leio: “Após receber voz de prisão, a mulher permaneceu no fórum por mais quatro horas depois que a sessão foi encerrada, pois, segundo Marcelle [a promotora de Justiça na audiência], o juiz só lançou a ata no sistema às 20 horas. Depois da audiência, a mãe foi levada para a delegacia e prestou depoimento. ‘O delegado não lavrou flagrante, pois concluiu que não havia provas. Ela não teve liberdade de expressão, não foi ouvida. Isso doeu no meu coração’, concluiu a promotora”.

Por mais que estejamos escolados na iniquidade; por mais que estejamos acostumados ao teatro do absurdo que se tornou o Poder Judiciário neste país; por mais, enfim, que por autoproteção estejamos dessensibilizados quase ao ponto da indiferença, confesso, estou há vários minutos parado aqui diante da tela, atônito, como costumam ficar europeus ou norte-americanos quando contamos nossas barbaridades: “It’s not possible! Are you serious?”

Por mais que estejamos acostumados ao teatro do absurdo que se tornou o Poder Judiciário neste país, o caso da mãe que recebeu voz de prisão no julgamento do acusado de matar o filho dela me deixou vários minutos parado diante da tela

Escrever sobre o filme já estava sendo difícil, a contragosto. Por não ter achado nada de mais e saber como seria a recepção de parte dos leitores. Refiro-me aos da bolha em que parece ser imperioso adorar o filme antes mesmo de tê-lo visto e, depois de assistido, exagerar consideravelmente no quanto teria sido impactante etc. Enfim, como me recuso a escrever como quem pede desculpas, estava aqui enfrentando minha preguiça até esta notícia me calar.

Hoje em dia palavras como “empatia” escorrem das bocas com uma facilidade impressionante, mas aqueles dos quais dizemos sentir empatia são esquecidos em pouco tempo, como cuspes. Não sou diferente. Parte do meu espanto é comigo mesmo. Por que, por exemplo, as condenações desproporcionais dos arruaceiros do nosso 8 de janeiro, clamorosamente injustas, não “me pegaram” como o caso dessa mãe? Por que, diante da barbárie cometida pelo Hamas em Israel, tampouco fiquei tão perplexo? Por que até mesmo o horror da pedofilia retratado em parte pelo filme também não me comoveu tanto assim? São claramente situações mais graves, mais estonteantes.

Talvez seja por autodefesa mesmo, tentando manter a compaixão controlada para não ser soterrado pelo desespero. Mas talvez esse controle signifique algo pior. Esse não deixar doer a dor dos outros a não ser o suficiente para nos sentirmos boas pessoas, mascarando o egoísmo de quem, no fundo, está aliviado por não ser consigo a dor, como no famoso poema de Lucrécio, Sobre a Natureza das Coisas, em que há um trecho sobre um naufrágio a que o observador assiste da areia da praia:

Suave é, em magno mar, as águas por vento batidas,
quando, da terra, podes ver magno esforço dos outros;
não porque sejam prazer agradável os pesares dos outros,
mas porque ver-se carente dos males é algo suave.

Seria ainda compaixão quando, diante do naufrágio do outro, há mais alívio por não ser você a sofrer? E com quantos sofrimentos alheios não somos assim, não sou assim… Mas não hoje, não diante dessa notícia, dessa mãe. A compaixão real naufraga. Como diria o filósofo Spinoza, a compaixão é uma forma de tristeza que transforma o “eu” em “nós”. E estou aqui, entendendo melhor Virginia Woolf quando morreu o seu irmão Thoby, que escreveu em seu diário: “e agora refugio-me na escrita consolatória de Lucrécio”.

Escrevo para tentar me consolar, portanto, o que não deixa de ser outro movimento de amor-próprio, ao menos agora consciente de si, de sua pequenez que mais abraça a si mesmo do que aquela mãe cuja solidão não ouso conceber.

Agora, imagine estar numa sala ao lado do sujeito acusado de matar seu filho e ser acusado pelo juiz de não ter “inteligência emocional” por simplesmente ter dito que o sujeito era ninguém para você. Segundo a notícia, a mãe suportou a audiência até o fim, demonstrando mais inteligência emocional do que qualquer um, mas, quando acabou, jogou um copo plástico e, antes de sair da sala, teria dito ao acusado que ele podia escapar da justiça dos homens, mas não escaparia da Justiça de Deus. Foi nesse momento que o juiz lhe deu voz de prisão.

Imagine estar numa sala ao lado do sujeito acusado de matar seu filho e ser acusado pelo juiz de não ter “inteligência emocional” por simplesmente ter dito que o sujeito era ninguém para você

O que dizer diante de tamanha desinteligência do magistrado, não só emocional? Prefiro permanecer diante da minha perplexidade, que também vem do fato de nossa língua não ter um nome para uma mãe que perdeu um filho. Quando um filho perde os pais, torna-se órfão, mas a mãe, quando perde o filho, perde também o nome de mãe. Calo-me, novamente, lembrando dos versos de Chico Buarque em Pedaço de Mim (que prefiro cantada na voz de Simone):

Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Espero que aquela mãe, que já não espera justiça alguma dos homens (e com razão), possa ao menos ser consolada, nem que seja assim, vindo de um desconhecido distante escrevendo com compaixão sincera, como quem abraça e reza. Porque é da natureza da compaixão ser também uma forma de oração, não apenas de tristeza.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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