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Cate Blanchett no papel de Lydia Tár, a maestrina predadora.
Cate Blanchett no papel de Lydia Tár, a maestrina predadora.| Foto: Divulgação/Universal

“Schopenhauer avaliava a inteligência de uma pessoa por sua sensibilidade de suportar ruídos”, disse o antigo mentor de Lydia Tár em uma conversa com a maestrina no filme Tár, favorito a ganhar o Oscar que se realizará no próximo domingo (antes, darei spoilers). Ao que ela devolveu, com ironia: “Ele também não jogou certa vez uma mulher escada abaixo?” O mentor respondeu no mesmo tom: “Sim. Não ficou claro se esta falha pessoal e privada era de todo relevante para seu trabalho”.

É também o drama da própria Lydia retratado no filme, que inicia apresentando-a como um gênio e, aos poucos, revelando ser também uma escrota abusando de seu poder sobre seus subordinados. Seus erros e maldades na vida pessoal “cancelariam” suas realizações musicais passadas e futuras? Eis o dilema que o filme apresenta. E, se não entendeu direito do que se trata, lembre-se de Michael Jackson e as acusações de pedofilia.

Para uma história assim, pouco deveria importar se o abusador é homem ou mulher, hétero ou homossexual, mas apenas os atos cometidos. Acontece que nos tempos em que vivemos essas definições parecem mais relevantes do que qualquer coisa, daí porque o fato de Lydia ser uma maestrina mulher (algo raro no meio) e lésbica naturalmente faz os devotos da religião woke simpatizarem imediatamente com ela, acreditando que, pela forma como o filme começa, estão diante de um filme “pró”.

Tár é ótimo para diagnosticar a quantas anda a nossa inteligência, que hoje, em termos gerais, decaiu tanto que desconfio que já nem conseguimos mais medi-la como Schopenhauer fazia

Entretanto, minutos depois o filme “desconstrói” Lydiacom uma cena significativa dela dando uma lição em um de seus alunos que se recusava a escutar Bach por este ser um homem branco hétero (acho que eram esses os problemas, não lembro direito, o wokismo me dá preguiça e quase não guardo suas bobagens na memória). Aí parece que o jogo virou, não é mesmo? É mais provável, agora, que os espectadores antiwoke passem a gostar do filme, achando que ele seria “anti”.

No fim das contas, o filme não é nem um nem outro. O que me parece é que, ao se manter “neutro”, apenas retratando o drama do abuso de poder, de autoridade, nesse contexto sociocultural em que vivemos, o filme cria propositalmente uma dúvida sobre a justiça ou não do julgamento e destino de Lydia. Ou seja, deixa um “ruído” no espectador, aquele que, segundo Schopenhauer, testa nossa inteligência pela sensibilidade de suportá-lo.

Além da analogia com o estado de dúvida, a metáfora do ruído utilizada pelo filme também se refere à existência de nuances na realidade, no sentido empregado pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em seu excelente ensaio Sobre Liberdade de Expressão, publicado nesta semana pela Quatro Cinco Um e que pode ser lido no site da revista, no qual escreveu: “Precisamos insistir não apenas na verdade, mas também na nuance”.

Tár é ótimo para diagnosticar a quantas anda a nossa inteligência, que hoje, em termos gerais, decaiu tanto que desconfio que já nem conseguimos mais medi-la como Schopenhauer fazia, mas sim pela sensibilidade de conseguir escutar alguma “música” em meio a tanto “ruído”. Uma música como a 5.ª Sinfonia de Mahler, que Lydia ensaia com sua orquestra durante todo o filme, significando muito mais do que parece, preenchendo não só as lacunas de sua história pessoal, que ficam apenas sugeridas, mas também uma busca por redenção através do sofrimento, um dos temas centrais nas obras de Mahler e que, nesta em específico, entendidos consideram ser uma representação musical do amor fati nietzschiano, ou seja, uma tentativa de aceitação do destino, seja ele bom ou ruim.

Mas aqui consigo antever muitos leitores dobrando a esquina, desistentes por nunca terem escutado a sinfonia e, se escutaram, não terem parado para pensar sobre o que representaria, ficando até curiosos por essa busca por redenção, mas não o suficiente para escutá-la com atenção, até porque apareceu também aí um Nietzsche com latim (“Já não bastava Schopenhauer, que pelo visto era um Michael Jackson da filosofia?”) e aí chegou a notificação com a foto do menino deputado usando uma peruca loira no plenário da Câmara...

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