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“Donald Trump é imprevisível”, dizem, afirmam, irritam-se os analistas e especialistas. É nítida a má vontade em reconhecer que o sujeito é bom mesmo em blefar. Sim, blefar. A imprevisibilidade é o principal efeito de quem sabe fazer isso. Em um jogo de pôquer, por exemplo, quem sabe blefar não consegue ser decifrado, se tem ou não uma “boa mão”.
Mas e se o jogo não é de pôquer, mas de política internacional, e os parceiros, adversários e inimigos sabem que o “jogador imprevisível” tem em mãos cartas poderosas o suficiente para vencer? A imprevisibilidade aí está não no “se”, mas no “quando” usará essas cartas. É o caso de Trump. Note que ele controla o timing das negociações que instaurou com o mundo todo, desde o momento em que começam, o ritmo com que se desenrolam e também o final.
Os tolos podem achar que seus recuos durante a negociação – de prazos, de porcentual de tarifas etc. – são por “amarelar”, o tal do “Trump always chickens out”. Mas, quando analisamos as negociações que chegaram ao fim, fica claro que foi apenas controle do seu ritmo, acabando por fechar acordos comerciais favoráveis aos EUA. Alguns considerados até improváveis. Os exemplos recentes do Japão e União Europeia são apenas os mais vistosos, mas não os únicos.
O que Trump está fazendo é explicado pela chamada teoria “agenda-setting”: trata-se da capacidade de definir uma agenda e como isso pode ser feito
Isso está nítido no caso do Brasil. Trump é quem deu início com sua carta a Lula em 9 de julho, e vem controlando o ritmo desde então. A aplicação da sanção severa contra o ministro Alexandre de Moraes, no mesmo dia em que alivia a ameaça de impor tarifas de 50% a todos os produtos importados do Brasil, demonstra isso com clareza. Tomou a decisão antes do prazo concedido – para mostrar quem tem esse poder – e impôs não apenas nova data para entrada em vigor da tarifa, mas os termos em que a negociação tem de prosseguir.
Algo que me parece ajudar a entender o que Trump está fazendo é explicado pela chamada teoria “agenda-setting”, formulada por Maxwell McCombs e Donald Shaw, na década de 1970. Em termos simples, trata-se da capacidade de definir uma agenda e como isso pode ser feito.
A teoria era voltada originalmente ao universo jornalístico, examinando a forma como a imprensa estabelece sobre o que as pessoas vão falar. Não se trata de dizer o que pensar, mas sim de determinar quais assuntos são importantes e em que termos o debate vai acontecer. Com a internet, esse poder da imprensa de enquadrar o debate público tornou-se muito menor, mas a teoria ainda serve para entendermos situações em que agendas estão a ser definidas, como é precisamente o caso de Trump com o Brasil.
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Donald Trump tem se mostrado um mestre nessa arte, e sua estratégia com o Brasil é um exemplo didático de como ele a aplica. É como um maestro que escolhe a música que a orquestra vai tocar.
A teoria diz que o agendamento começa com o framing, o enquadramento inicial. Naquela primeira carta, Trump misturou deliberadamente questões econômicas e políticas, forçando o Brasil a lidar com uma crise multifacetada. Com isso, arrastou para a negociação diversos setores brasileiros. O que se seguiu, no entanto, foram movimentos mais cirúrgicos e calculados por parte de Trump, que recusou qualquer diálogo que não fosse sobre a questão política colocada.
Com seu ato estabelecendo a tarifa no dia 30, quarta-feira passada, Trump completou o framing, especificando sobre o que a discussão tem de se dar, detalhando melhor os abusos de que acusa o governo brasileiro, especialmente na figura de Alexandre de Moraes, finalizando seu decreto de forma explícita, enquadrando a negociação apenas na questão política: “Estou tomando esta ação nesta ordem exclusivamente com o propósito de abordar a emergência nacional nela declarada e não para qualquer outro propósito”.
Não há mais como o Brasil recusar o debate sobre as perseguições judiciais ou tentar negociar apenas em termos comerciais
Com isso, Trump hierarquizou a negociação. O outro elemento que caracteriza a teoria do agendamento é justamente esse: hierarquizar. Ou seja, disse em alto e bom som que a questão econômica, embora relevante, está condicionada à pauta política. O debate comercial foi tornado refém da discussão sobre o Judiciário brasileiro.
Não há mais como o Brasil recusar o debate sobre as perseguições judiciais ou tentar negociar apenas em termos comerciais. A espada de novas sanções, aumento de tarifas etc. continua pairando, e a única forma de afastá-la é enfrentar a pauta política imposta por Washington.
Embora as primeiras reações oficiais do Brasil tenham aparentado firmeza na defesa da soberania e das instituições, confirmam que a estratégia de Trump está funcionando ao puxar o debate para o seu terreno. O STF fez uma nota defendendo a legalidade das ações de Moraes; a Presidência da República, por meio de Lula, também publicou nota apenas tratando da questão política; os presidentes da Câmara e Congresso se manifestaram também apenas neste sentido.
A questão agora não é mais se o Brasil vai lidar com a pauta política imposta, mas como e a que custo
Todas essas reações, embora defendam com veemência a autonomia e a integridade do Brasil, estão, paradoxalmente, respondendo à agenda definida por Trump. Elas não ignoram a questão da “perseguição judicial”; ao contrário, defendem-se dela, justificam-se, refutam-na. Isso significa que, mesmo não “cedendo” no mérito, o Brasil foi compelido a entrar no debate nos termos definidos por Washington.
O Brasil se encontra agora em uma encruzilhada. Ignorar a demanda política de Trump significa arriscar a ativação total de um arsenal de sanções e aumento de tarifas, com consequências econômicas devastadoras, algo que o período vivido da mera ameaça disso já serviu para amedrontar todo o país. Ceder, porém, mesmo que parcialmente, pode significar inaugurar uma crise institucional interna cujo controle é improvável e sua resolução imprevisível.
A questão agora não é mais se o Brasil vai lidar com a pauta política imposta, mas como e a que custo. Se Lula acha que o jogo é de truco, então sabe que só dá para sustentar o blefe até chegar ao 12 (no truco, os adversários podem aumentar a aposta até chegar a esse número de pontos, que é o número com que se vence a partida). Aí será preciso mostrar as cartas, que todos sabemos muito bem que o Brasil não possui para vencer esse jogo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




