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Foto: Francisco Escorsim
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Embora muito se fale sobre a degradação cultural e a falência educacional brasileiras, são poucos os que têm noção da real dimensão do estrago. Quem tem sabe que não há qualquer possibilidade de solução no curto prazo por via institucional, seja pública ou privada. Muito menos saída política, seja qual for. Quando somos tantas gerações entortadas, a incultura e a má educação tornaram-se a regra e é impossível educar as novas gerações sem antes desentortarmos seus educadores: nós. Pela mesma razão, é algo impossível de ser feito em escola ou universidade. Quem tem essa consciência sabe, portanto, que qualquer que seja a solução ela começa consigo. É somente por uma confissão da sua própria incultura que você pode começar de fato a se desentortar e, com isso, ajudar o próximo. O conserto, se for para acontecer, só poderá acontecer assim: um por um.

Temos, sim, excelentes professores capazes de ensinar, de comunicar certos conteúdos, mas isso é a parte menor de uma educação verdadeira. Aliás, o simples fato de nem sequer conseguirmos imaginar a educação como algo distinto de ensino, de instrução, de etiqueta social, já diz tudo sobre nossa deseducação e incultura. Não nos faltam professores, especialistas nisso e naquilo, nem eruditos cheios de informação, mas são (ainda) raros os “homens maduros”, como chamava Eric Voegelin ao spoudaios de Aristóteles, que nas palavras de Martim Vasques da Cunha é “a pessoa que desenvolveu ao máximo as suas potencialidades e, em consequência, aprendeu que governar e comandar os outros é antes de mais nada governar e comandar-se a si mesmo, especialmente no domínio das paixões e dos sentimentos. Conhece a profundidade da sua alma e da dos seus semelhantes porque desceu ao inferno do conhecimento próprio e de lá voltou. Neste sentido, não é apenas alguém que manda, mas alguém que representa os anseios mais íntimos dos homens de carne e osso que compõem a sociedade; não é um chefe político ou institucional, mas um líder autêntico, com liderança existencial, pois chega a ser o reflexo da sociedade que governa”.

Este trecho faz parte do ensaio “Eric Voegelin e a coragem da filosofia”, publicado originalmente na segunda edição da revista Dicta&Contradicta, e seu autor é um dos que estão se desenvolvendo nesse sentido. Basta acompanhar seu trabalho para se constatar isso, em especial seu livro de leitura imprescindível, A poeira da glória: Uma (inesperada) história da literatura brasileira, inteiramente escrito desde essa perspectiva, e sobre o qual já comentei acolá e aqui também. Mas não cito Martim por acaso. Nessa história rascunhada que venho tentando fazer das origens da “nova direita”, é um personagem importante. Foi um dos colaboradores do site O Indivíduo, já tratado aqui, e um dos criadores da citada revista Dicta&Contradicta, publicação do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Mas antes de existir um instituto, uma revista, existia justamente um pequeno número de pessoas conscientes da sua própria necessidade de se educar, e por causa disso formaram um grupo de estudos. No início, eram cinco. Além de Martim, participavam Rodrigo Duarte Garcia, Renato José de Moraes, Guilherme Malzoni da Motta Rabello e Henrique Elfes. O grupo se dedicava ao estudo sistemático das grandes obras do pensamento ocidental, a começar pelos diálogos platônicos, e convidava professores para ministrar algumas palestras, ou um deles mesmo as dava. Aos poucos, outros foram se integrando e três anos depois, como não poderia ser diferente para iniciativas que dão frutos, vislumbraram a possibilidade de fazer mais pelo próximo do que já faziam por eles mesmos. Surgiu a ideia, então, de criar o Instituto de Formação e Educação, o IFE, que tinha por objetivo “não (…) ser uma escola ou universidade. É uma associação que quer criar as bases de uma educação cultural de qualidade, ainda quase inexistente no Brasil”, conforme se lê da apresentação de sua proposta quando criado.

É fundamental destacar aqui essa palavra: bases. Ou seja, fundamentos, pilares, raízes para que depois possam florescer escolas e universidades dignas dos nomes. Como se disse na mesma apresentação e consta do site atual do instituto: “Na Inglaterra, esse substrato foi criado por uma educação média de excelente qualidade, graças às grandes escolas secundárias independentes como Eton; nos outros países da Europa, pela educação pública média e superior; nos Estados Unidos, pelas universidades privadas, principalmente as da Ivy League. Ao mesmo tempo, foram necessárias diversas instituições que forneceram a infraestrutura adequada: bibliotecas, institutos de pesquisa e pós-graduação, mais modernamente os think tanks. Mas houve, sobretudo, um elemento ‘intangível’, que consiste em uma tradição de trabalho intelectual sério”.

É justamente essa tradição que perdemos, se é que a tínhamos. O resultado disso, conforme consta do mesmo documento: “ é que hoje não há, no panorama brasileiro, nenhuma instituição que assuma a tarefa de educar nos valores básicos do ser humano e na grande cultura clássica ocidental, que no entanto é e sempre foi a espinha dorsal de toda a nossa educação”. Foi para preencher essa lacuna que o IFE foi criado, com plena consciência de suas limitações e possibilidades reais de ação, daí porque começou ofertando cursos e seminários para pequenos grupos, reproduzindo a experiência que deu à luz o próprio IFE e, além disso, atuando para divulgar a alta cultura, tanto por meio de traduções de grandes livros em parceria com editoras, como pela publicação de uma revista cultural semestral, a citada Dicta&Contradicta.

O nome mais que interessante, sugerido por Martim Vasques da Cunha e acatado pelo grupo original do IFE, dá bem a medida do propósito da revista, como se esclareceu em seu primeiro editorial: “Ao contrário do que talvez se possa imaginar ao ver o título, não temos a intenção de criar polêmicas, mas de incentivar no Brasil o hábito da discussão de ideias, algo que se pode fazer com toda a nobreza e boa educação. Porque formar opiniões, expô-las à critica, descartar algumas e aperfeiçoar outras, faz parte de qualquer trabalho intelectual honesto. (…) Acontece que, para formar as opiniões, antes de mais nada é preciso estudar a sério, ler bastante, refletir. Por isso mesmo não se encontrarão aqui notícias de última hora sobre lascas soltas do acontecido neste ‘vale de bobagens’, como diz Guimarães Rosa. Pelo contrário, Dicta compõe-se de ensaios relativamente longos sobre temas humanos de sempre – pensamento, comportamento, filosofia, literatura e arte, além da análise de situações e fatos que têm interesse a longo prazo. Não oferece soluções pré-fabricadas para problemas concretos, políticos ou (muito menos) partidários, sociais ou econômicos, morais ou de qualquer outra ordem. Não pretende ensinar ao leitor o que deve pensar, mas oferecer-lhe estímulo para pensar”.

De fato, a revista entregou o que pretendia. Foram dez edições publicadas entre 2008 e 2013 que podem ser lidas hoje sem maior prejuízo temporal. Não soam datadas em sua maioria e estimulam o leitor a pensar, não a concordar ou discordar automaticamente. O auge da revista foi seu sexto número, com uma entrevista histórica com Mario Vargas Llosa, uma semana depois de ele ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, e tendo em seu lançamento a presença de José Padilha, que tinha acabado de lançar o filme Tropa de elite 2, sucesso absoluto de bilheteria nos cinemas, acompanhando o roteirista de Cidade de Deus, Bráulio Mantovani, que publicou um ensaio na mesma edição da revista. Não é preciso dizer que houve lotação máxima no evento.

É claro que, para ter sido assim, a desvinculação ideológica e partidária era absolutamente essencial, assim como a financeira. Como se constata da proposta do instituto e revista: “Quanto à sustentabilidade econômica, um instituto desse tipo não pode ter fins lucrativos, mas também não pode depender de incentivos governamentais nem de contribuições com finalidades de propaganda. Os recursos terão de surgir, portanto, de parceiros que contribuirão de maneira desinteressada”. Os primeiros parceiros foram o Banco Fator e o Instituto Bovespa, depois substituídos pela Telebrasil e Febratel, dentre outros patrocinadores ao longo da história da revista, sendo que a partir da sétima edição a revista foi publicada pelo selo Civilização Brasileira, da editora Record, mas basta ler as revistas para se constatar que manteve sua independência editorial.

E isso é um ponto essencial nessa história da “nova direita”. O que mais há hoje em dia são “especialistas” em etiquetar qualquer iniciativa como estando a serviço disso e daquilo ou desse ou daquele, pouco se lixando para o conteúdo do que é produzido, para a realidade no fim das contas. Esse espírito de desconfiança e maledicência já existia à época da criação da Dicta, mas não com tanto descaramento. Se ela fosse criada hoje, aposto tudo que tenho que sofreria muito mais acusações do que sofreu à época, quando se dizia à boca pequena que era uma revista “do Opus Dei” ou de que servia ao tucanato paulista, não raro com as acusações sendo combinadas. Mas é impossível empurrá-la para essas gavetas que revelam mais de quem diz do que sobre ela; ainda que houvesse, sim, a presença de membros da Obra e pessoas próximas ao tucanato entre os editores e colaboradores.

Quem quer que queira ler a Dicta pela lente ultramíope da ideologia, se for honesto, terá de admitir que ela seria tão tucana quanto conservadora quanto libertária quanto católica, se duvidar até esquerdista. A terceira edição, por exemplo, trouxe uma entrevista com Fernando Henrique Cardoso ao lado de um ensaio substancial de Olavo de Carvalho sobre Mário Ferreira dos Santos. Acrescente-se a publicação de autores como Bruno Tolentino, Roger Scruton, Roger Kimball, Mendo Castro Henriques, Luiz Felipe Pondé, João Pereira Coutinho, Theodore Darlymple, Oliver Sacks, Ferreira Gullar, Gustavo Franco, David P. Goldman, Yves Bonnefoy, David Mamet, Mario Vargas Llosa, dentre tantos outros para se ver esfumaçar qualquer tentativa de rotulá-la ideologicamente. Isso fica ainda mais difícil de ser feito quando vemos quem foram seus colaboradores, a começar por um de seus membros fundadores, Joel Pinheiro da Fonseca, cujo viés liberal-libertário é confesso, sendo hoje colunista da Folha de S.Paulo, também escrevendo para a Veja.

É aqui que a importância da Dicta na história cultural recente se revela maior do que se imagina. Muitos que hoje em dia estão a escrever em jornais e revistas, publicando livros ou atuando de alguma forma na vida cultural e também na militância política passaram pela Dicta. Quem vem acompanhando essa série de artigos e for folhear os índices das Dictas publicadas verá que entre seus colaboradores havia Pedro Sette Câmara, d’O Indivíduo; vários dos wunderbloggers, em especial Ruy Goiaba, com coluna de humor fixa; e Julio Lemos, que não saiu no livro dos wunders, mas teve seu blog “transplantado” para as páginas da revista, também de forma fixa. Entre os membros fundadores, citei uma das obras de Martim Vasques, mas há também seu outro livro Crise e Utopia: o dilema de Thomas More, publicado pela Vide Editorial, sendo também colaborador de vários jornais, como esta Gazeta do Povo; Rodrigo Duarte Garcia publicou seu (ótimo) romance, Os Invernos da Ilha, pela Record em 2016, e Renato José de Moraes publicará o seu de estreia este ano, também pela Record. Também verá que outros, ainda não tão conhecidos, já apareciam pela revista, como Bruno Garschagen, que se tornaria best-seller pela Record; o poeta Érico Nogueira; Dionisius Amêndola, que mantém atualmente na raça o mais que recomendado canal de cultura Bunker do Dio, no YouTube; o editor desta Gazeta do Povo Marcio Antonio Campos, resenhando livros em algumas edições; Eduardo Wolf, coeditor do blog Estado da Arte, no portal do Estadão; o crítico literário Rodrigo Gurgel; dentre outros.

Para os leitores, com o fim da Bravo! e tendo os cadernos culturais de jornais e revistas mal arranhando os lançamentos do dia, somente na Dicta se poderia encontrar algo de mais substancial. E havia público para uma revista assim, tanto é que a primeira edição esteve entre as mais vendidas em listas da Livraria Cultura e do Jornal do Brasil, e seu lançamento recebeu cobertura da imprensa, pela TV Cultura, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Estado de Minas, sendo indicada também na Veja. Melhor prova de sucesso não poderia haver, aliás, quando cerca de um ano depois surgiu outra revista de ensaios culturais, a Serrote, tão nitidamente seguindo o caminho da Dicta que nem sequer é preciso provar isso, basta folhear as primeiras edições de uma e outra.

Entretanto, embora a revista tenha sido bem-sucedida no seu início, durou pouco. Ainda que a publicação de dez edições de uma revista desse porte seja um evidente sucesso no Brasil, até um quase milagre, fato é que, em se tratando de cultura e das coisas do espírito, o tempo de vida teria de ser muito maior, como os próprios fundadores do IFE tinham consciência, como se lê da apresentação do instituto: “É um projeto de longo prazo, que começa modestamente, mas tem perspectivas amplas. E é o primeiro projeto cultural no Brasil que baseia sua credibilidade em dois fatores: a procura pela permanência dos seus ideais e uma estrutura financeira sustentável”. O IFE ainda existe, é verdade, e continua modestamente tentando dar continuidade a este projeto, como se pode ver pelas aulas valiosas dadas por Henrique Elfes e disponibilizadas no YouTube, assim como a própria Dicta, que resiste como um site, mas já sem o mesmo alcance e influência daquela época.

Ainda que a razão para o encerramento da revista em papel e a saída de vários dos membros originais do IFE seja explicável por desavenças internas e dificuldades de manter uma estrutura sustentável (todo colaborador da revista recebeu para escrever por lá, salvo os membros do IFE), não se pode desconsiderar a circunstância degradada e degradante da cultura e educação brasileiras como principal obstáculo e adversário de um projeto como esse, algo que só se vence e supera, de fato, com cada um assumindo com humildade o dever para consigo mesmo de preencher lacunas de formação e correr, porém sem pressa, recuperar o tempo de vida desperdiçado ou roubado. É por isso que iniciativas como criação de institutos dificilmente dão e darão certo no Brasil por um bom tempo. Porque é preciso muito mais do que alguns membros maduros para fazer acontecer algo em escala maior do que a individual.

A dificuldade de se criar um grupo consistente, ao mesmo tempo em que cada membro tem o dever irrenunciável de preencher inúmeras lacunas de formação e de personalidade, torna o projeto inevitavelmente moroso e repleto de desentendimentos, seja pelo domínio insuficiente da própria linguagem que traz inúmeros ruídos inevitáveis de comunicação, seja pelo egoísmo compreensível de quem procura antes se salvar de um naufrágio existencial do que outra coisa. Do lado do público consumidor, a degradação se apresenta de outra forma. A frivolidade dos consumidores culturais que compram tudo quanto é novidade que surja no mercado, mas pouco leem e menos ainda estudam com perseverança e método é generalizada. A quantidade de pessoas que estão aí há anos dizendo ler e estudar, mas ainda se perguntando o que devem ler primeiro ou fazendo listas de leitura jamais cumpridas ou acreditando piamente que é a quantidade de livros lidos que fará a diferença é imensa. Só no Brasil temos neófitos veteranos.

A esse respeito, aliás, vale destacar que, se o lançamento da primeira edição da Dicta foi um sucesso de público, já no segundo apareceram apenas alguns gatos pingados. Nos seguintes, a depender dos nomes presentes na edição, o público aumentava, como no da sexta, o maior de todos. Além disso, é das coisas mais fáceis encontrar quem tenha Dictas em casa, mas mal as folheou. Por fim, tente o leitor encontrar por aí algum resultado do esforço dos criadores e colaboradores da Dicta de criar o hábito da discussão de ideias. Tente encontrar algum diálogo, conversa, debate suscitado por algum ensaio publicado em alguma das Dictas. Tenho certeza de que encontrará muita fofoca a respeito dos colaboradores e suas relações, mas quase nenhuma discussão de ideias. E só deixo esse “quase” aí por prudência, porque minha aposta é a de que não houve.

Um dos resultados dessa degradação cultural que faz iniciativas como essas terem muitas dificuldades para se estabelecer, quase sempre com vida curta e conseguindo pouco êxito, também está na desconsideração total com que são tratadas depois do seu fim. Mal são lembradas, na verdade, nem mesmo por novas iniciativas semelhantes que tentam começar do zero, sem procurar aprender com os erros e acertos dos seus antecessores, e enfrentam ou enfrentarão os mesmos problemas e dificuldades. Eis aí, aliás, uma das razões para tentar rascunhar a história cultural recente, como estou fazendo por aqui.

Na coluna da semana passada falei sobre a inspiração maior de Bruno Tolentino sobre os membros originais do IFE e da Dicta, tentando retratar um pouco da busca do poeta por uma integridade maior da sua personalidade, pela conquista da maturidade segundo Eric Voegelin, conforme citado acima no ensaio de Martim Vasques da Cunha, ao qual retorno para encerrar este capítulo da história: “A conclusão de Voegelin é um chamado à responsabilidade individual e a uma qualidade completamente insuspeitada neste contexto: a humildade. Porque a humildade é exatamente aquilo que afirmamos no início deste artigo: confiar na realidade. A coragem de confiar no real é a única garantia que permite superar a estupidez institucionalizada, tornar-se um homem maduro e encontrar essa realidade que fundamenta o encontro com todas as outras realidades: a vida do espírito. São necessários anos e anos de dedicação, e é necessária também uma reviravolta interior para perceber as coisas por esse novo olhar. Mas o começo de tudo está em perceber que estamos sempre a dois passos de nos tornarmos estúpidos”.

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