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Quando Bruno Tolentino retornou ao Brasil em 1993, costumava dizer: “Voltei para ensinar”. E morreu fazendo exatamente isso. Em maio de 2007, o poeta deu suas últimas aulas em um estado físico terminal, mal conseguindo falar. Poucas horas depois da última delas, foi internado, não mais saindo do hospital e vindo a morrer em 27 de junho de 2007. Essas aulas foram editadas e publicadas no primeiro número da revista Dicta&Contradicta, lançada em junho de 2008, em que lemos o propósito do poeta à beira da sua morte: “Por isso, proponho-me agora, sobretudo, recordar como foi que cheguei a várias conclusões durante a minha vida, como foi que elas me vieram, por que algumas coisas me tiraram do sério, e de que maneira tudo isso me fez concluir que era necessário fazer uma contribuição cultural – lá vem essa palavra outra vez –, civilizacional, aqui no Brasil.”

A importância de Bruno Tolentino para o possível renascimento cultural brasileiro (é fundamental frisar e repetir: possível renascimento) está longe de ser devidamente reconhecida e destacada. Para a tal da “nova direita”, Bruno Tolentino provavelmente só é conhecido por sua presença considerável em citações no documentário O Jardim das Aflições, sobre a obra de Olavo de Carvalho. Ou, para aqueles que leram o livro cujo título foi tomado para o filme, pelo prefácio que o poeta escreveu à obra. Mas Tolentino foi e é muito maior do que isso e a própria escrita desse mais importante livro de Olavo de Carvalho foi fruto da amizade dos dois que, à mesma época, ajudaram-se mutuamente tanto na feitura dessa obra como no livro de combate cultural de Bruno, Os Sapos de Ontem, obra já tratada aqui nesta série de artigos.

Mas, enquanto Olavo seguiu adiante, incansável na luta contra a imbecilização coletiva do país, Bruno pareceu ter se recolhido, voltado à poesia e abandonado o front. Nada mais enganoso, como se comprova com a publicação dessas aulas em que o poeta afirmou: “Temos muito o que defender, aqui no Brasil, contra a atual tendência ao bestialógico e ao despudor dos neurônios, e isso é muito importante; mas mais importante ainda é não descobrirmos, na véspera da morte, que passamos a vida inteira abençoando supermercados…” Por “abençoar supermercados” o poeta se referia à degradação da linguagem e à urgência e absoluta necessidade de restaurá-la: “tenho muito interesse em deixar bem sublinhada a necessidade de escolhermos entre a linguagem profunda que a poesia nos empresta, e essa outra que, no fim das contas, quando não é uma doxologia, quando não é a história de um maravilhamento, é simplesmente a arte de abençoar supermercados…”

Quem quer que leia esse texto com suas aulas perceberá imediatamente essa diferença. É impossível começar a leitura e não ser levado a essa profundeza desde onde falava, na véspera da sua morte, marcando muito claramente a diferença entre quem fala não apenas com a própria voz, não apenas com o coração nas mãos, mas como quem descobre que não morrerá se não quiser. Permitam-me transcrever lição tão valiosa que começou a dar falando da então recente visita do papa Bento XVI ao Brasil:

“A verdade é que a presença deste pontífice subitamente solucionou a minha vida, completamente: eu desisti de morrer. Talvez agora tenham de consultar a esse respeito, no sentido de que a morte nunca teve maior importância nas contas que fiz com a vida: se a festa está acabando, muito bem, vamos acabá-la da melhor maneira possível. Em todo o caso, até agora isso não tinha grande realidade, como de resto tudo aquilo que fiz: o esforço de escrever, de entender, de ser menos indigno da condição humana. Mas a presença do papa subitamente trouxe uma coisa nova com a qual eu, aos quase 70 anos, ainda não me havia defrontado. (…) Para qualquer religião, seria uma heresia sugerir que nos dias da visita do papa ao Brasil tivemos essa experiência de ‘ver frente a frente’, ou pelo menos um antipasto da coisa. Mas não consigo deixar de ter essa impressão. (…) Isso tudo me aconteceu e tive a impressão de que estão todos enganados, que não vou morrer coisa nenhuma, que não precisam se preocupar com isso: ‘Pode tirar esses berloques todos porque já está tudo resolvido. E quem resolveu não fui eu nem o senhor. A não ser que seja o Senhor com ‘s’ grande’.”

A conversão de Bruno Tolentino começou de fato aos 40 anos, por volta de 1990, segundo ele próprio, depois de ter sido condenado por tráfico de drogas, na Inglaterra, a uma pena de 11 anos, mas que foi suspensa depois de 22 meses de cumprimento. Até então sua vida tinha sido desregrada, o que se pode constatar pela leitura de Das Booty, uma “recriação imaginativa de fatos reais” vividos pelo autor Simon Pringle e seu companheiro, Bruno Tolentino. Ambos viveram juntos entre 1972 e 1985, como amantes, e permaneceram amigos depois do término do relacionamento. A história do livro é a de uma das viagens do casal à África para traficar haxixe para a Inglaterra. Como esta há outras tantas que fazem da biografia de Bruno Tolentino uma vida cinematográfica e que poderá ser melhor conhecida em breve, quando for publicada sua biografia que vem sendo pesquisada e escrita por Pedro Sette-Câmara (que também já apareceu por aqui quando tratei do jornal/site O Indivíduo).

O interessante da conversão de Bruno é que teve menos a ver com uma questão religiosa, de fé, do que moral. Como contou em uma entrevista reveladora: “o meu problema que não era religioso, não era uma questão de fé, no sentido de crença, como diz Katharina no meu livro: ‘as crenças não te melhoram’. O meu era um problema de comportamento moral. (…) A partir de minha conversão vi que não podia mais viver uma vida dupla, a vida do médico e do monstro; antes disso fazia um pouco de tudo, tráfico de influência, de droga, fui para o Líbano, me meti na guerra e outras maluquices desse tipo. Um dia uma moça libanesa me disse: ‘Você precisa botar honra no seu código’, isto é, me faltava integridade”.

Integridade, palavra que, antes de ganhar seu significado moral, exige antes um outro, literal: inteireza. Ter partes, mas ser um todo inteiro, ser uno, ser um só. Como disse o poeta na mesma entrevista reveladora: “A noção de indivíduo ficou mais clara para mim. Ser indivíduo é ser indivíduo diante de alguém, diante de Cristo. (…) Explico-me: diante de Cristo, você não pode mais trapacear, diante de uma presença não pode ficar ambíguo. Quando a presença é real você fica constrangido. (…) O cristianismo não é uma teoria, não é nem a voz de Deus, é pura e simplesmente uma presença de alguém real, sobrenatural, que está sempre com você e diante do qual você deve fazer tudo o que a vida te impulsiona a fazer. (…) É como a parábola do sal. Cristo é o sal. O sal realça o gosto da comida, não muda o gosto da comida, torna o peixe mais peixe, a carne mais carne. Assim como o encontro com Cristo não muda o que você é, mas agora você se torna você na dosagem perfeita: aquilo para que você era destinado a ser. Eu estou neste processo em que sou cada vez mais eu mesmo. Eu parei de ser uma caricatura de mim mesmo. Como dizia Píndaro: ‘Torna-te o que tu és’. Você se torna o que você é”.

Ao voltar ao Brasil, Bruno publicou a primorosa obra As Horas de Katharina, vencendo o Prêmio Jabuti em 1994, e conferindo sua produção poética posterior pode-se tranquilamente considerar Os sapos de ontem, de 1996, como uma exceção, uma obra de ocasião. O verdadeiro bom combate de Bruno Tolentino foi travado enquanto poeta, numa tentativa impressionante de sanear a cultura brasileira, não apenas esteticamente, mas espiritualmente, daí a importância central da história da sua conversão e busca por integridade.

No ano citado de 1996, Bruno foi operado para a remoção de um tumor no reto, possível decorrência da contaminação pelo vírus HIV. Em 1998, assumiu como editor das revistas República e Bravo!, tratadas aqui na última coluna, mas decidiu voltar à Europa em 1999. Seu afastamento foi explicado por ele próprio em outra entrevista: “Depois que me recuperei da doença, fiquei desapontado. Minhas obras já estavam todas prontas, como católico estava com a vida em dia, meus filhos todos criados, e agora? Meu plano era esse: morrer. Se não ia mais morrer, iria fazer o quê, então?”

Não morreu. Fez o quê, então? Em 2002, segundo contou na primeira entrevista aqui citada, “conheci o pensamento de padre Giussani quando ele diz: ‘a inexorável positividade do real’, e descobri este ponto de contato com ele. Contato que não encontrei nem com Von Balthasar nem com Eric Voegelin, nem com os grandes pensadores que me influenciaram. Há muito mais contatos com Padre Giussani, porque ele é um verdadeiro educador, é um formador da consciência alheia, não está interessado em vender o seu peixe, mas em treinar pescadores”.

Treinar pescadores. Bruno Tolentino deu um curso inteiro sobre literatura brasileira nos centros do Opus Dei, também para a editora É Realizações e em 2007, ano em que morreu, daria um curso no Centro de Extensão Universitária, também ligado ao Opus Dei. É desse curso que foi publicado o texto editado de três de suas aulas. Sobre o papel do educador, daquele que ensina, e que foi também a razão do seu retorno ao país em 1993, disse em sua provável última entrevista, publicada depois de sua morte: “O nosso problema educacional, velhíssimo, que nós temos, que sempre tivemos, é este: quando educamos alguém, nós simplesmente tratamos de domesticar essa pessoa, e domesticação não é educação. Para educar, você traz. Na medida do possível, da sua capacidade, você executa um trabalho de demiurgo, de trazer o que está ali. Você não põe nada ali dentro. Não tem por que se meter a enfiar nada na cuca de ninguém”.

Esta entrevista deveria ser lida não apenas por todo e qualquer educador, mas por todos que queiram de fato se orientar hoje em dia, numa época em que praticamente tudo se rebaixou a uma guerra ideológica entre esquerda e direita, que nada mais são do que duas formas de ver o mundo como ideia, exatamente o que Bruno Tolentino mais combateu. A certa altura, perguntado sobre o papel da escola, Bruno respondeu: “Os critérios de uma universidade, de uma casa de saber, por pior que seja, por uspiana que seja, são melhores do que a torre de marfim do sujeito que acha que sabe tudo. Eu constatei quão grave é você ser um autodidata. Você não tem a contestação do outro. O outro será sempre uma criação sua, e não uma barreira ao seu ego. O ego precisa ser conquistado e perdido todo santo dia. Senão, quando você vai ver, está no crime organizado. O crime organizado intelectual é o pior de todos. Eu sinto muita falta tanto do professor [Antônio] Houaiss quanto do professor [Miguel] Reale. Ambos, um praticamente de extrema-esquerda, o outro de extrema-direita, eram suficientemente humanos para carregar as suas dificuldades e as suas limitações, sem maquiagem”.

Com seu trabalho de poeta e também de educador, Bruno Tolentino foi a maior inspiração para que cinco pessoas começassem um grupo de estudos que daria origem ao Instituto de Formação e Educação (IFE), que por sua vez deu à luz a revista Dicta&Contradicta, assunto da próxima coluna, em cujo primeiro número, publicado um ano depois da morte do poeta, trouxe a transcrição editada das três aulas citadas e que termina com ele ensinando: “Cada um deverá perguntar-se, ter um passado de que não se lembra mais muito bem, que não sabe muito bem como julgar, de que não sabe com clareza que valor tem para si; mas algum valor tem, e você não deve querer trocá-lo por coisa alguma. Se vocês não fizerem isto, ficarão apenas ouvindo este velhote cacarejar feito uma galinha choca e não vão perceber que essa liberdade está dentro de vocês, de cada um. E essa liberdade passa pela defesa encarniçada daquilo que vocês já têm, e que não pode ser trocado por nada que lhes seja prometido para amanhã. Troquemos as nossas certezas por diversas perplexidades, e aí nós vamos, quem sabe, nos entender”.

Ao reler esse texto, dei-me conta do quão inspirado também estou sendo pelo poeta, ainda que indiretamente, ao começar e continuar a rascunhar essa história das origens da “nova direita”, cujo risco de se rebaixar à ideologia é imenso, se é que já não se rebaixou de vez. Por isso mesmo, Bruno Tolentino não cabe aqui como um de seus possíveis antecessores. É, antes, um seu antídoto que precisa ser resgatado, aplicado. Em outra entrevista, falando sobre ideologia, ou o mundo como ideia, disse:  “Qualquer que seja o apelido que a ‘dama ideia’ tenha, poderá ser vermelha, preta ou azul… onde não estiver o cristianismo tudo pode ser reduzido a ela. O cristianismo é este chamado à relação responsável homem a homem, do homem-Deus rumo ao homem, do Filho de Maria, que um dia nasceu e morava numa rua tal e que portanto não posso reduzir a uma ideia. Onde não houver esta relação fundamental com o fato humano fundamental, o Filho que saiu do ventre de Maria, a ‘dama ideia’ volta a dar o show dela. Veja esta Universidade Católica, para transformá-la naquilo que fizeram, precisou primeiro esvaziar o cristianismo de seu conteúdo, reduzindo-o a uma ótima ideia (vamos lutar para os pobres, vamos resolver as coisas etc…), assim a universidade se torna uma instituição. Para isso é preciso que desapareça tudo o que cheire a humanidade pura, eliminar Maria e os santos, desta forma Deus, o Deus Trinitário, fica lá no céu. Para que a ‘dama ideia’ possa dar as cartas é necessário esvaziar o cristianismo de conteúdo e deixá-lo no reino do conhecimento. O cristianismo seria a milésima ideia que a Humanidade não pôs em prática. Não se trata mais dessa ‘inexorável positividade do real’ que se me impõe e que impõe o outro. Assim é possível substituir a presença inevitável e opaca do outro com um receituário”.

Onde não estiver o cristianismo tudo pode ser reduzido à ideologia. Não à toa sua penúltima grande obra se chama O mundo como ideia, de 2002, que faz par com a culminação de sua obra poética, A Imitação do Amanhecer, publicada em 2006. Mas quem lê Bruno Tolentino hoje em dia? Mais do que isso, quem lê e entende o que ele está dizendo? Por isso, ele estava mais do que certo ao terminar sua entrevista na qual contou sobre sua conversão dizendo: “Para mim o martírio é outro: é aguentar esse povo que não entende do que estou falando com a minha poesia”. Nunca é tarde para começarmos a entender. E para entender é preciso antes conhecer melhor a própria história.

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