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Um dos assuntos mais difíceis de entender é a presença e o significado do mal no mundo. Diariamente, todos nós somos bombardeados com notícias sobre acontecimentos que podem ser caracterizados como sendo algum tipo de “mal”. Ninguém está imune. Nem as criancinhas distraídas em suas fantasias, nem o ermitão solitário com seus tormentos no deserto.

O horizonte é amplo e a paisagem aterradora. Do mal natural — como terremotos, tsunamis, furacões, vulcões, secas, doenças — ao mal humano — cuja lista não faço nenhuma questão de apresentar —, boa parte do que fazemos nessa vida é tentar nos proteger da possibilidade de sofrer algum tipo de mal. Não existe garantias.

Embora a natureza seja magnífica em seu esplendor, o fato é que ela também nos deixa perplexos por sua brutal hostilidade. Como é difícil compreender o sentido de grandes sofrimentos causados por terremotos, tsunamis e doenças. Perto do potencial destruidor da natureza, os seres humanos são tão parecidos em insignificância, pequenez e vaidade.

Como pergunta o Pregador: “Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?” A natureza não nos deixa esquecer que “todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó”. Eis um saber amargo: o pão de cada dia é custoso para cada um de nós.

Penso que não há mal que nos aflige mais do que o que habita o coração e alimenta as decisões humanas. Se por um lado desenvolvemos técnicas para tentar prever o mal natural, a ciência continua impotente diante da maldade humana. Mapear escolhas, classificar virtudes e vícios com estatísticas e apresenta-las em tabelas coloridas no Power Point a fim compreender o sentido do que se passa no calabouço das intenções é delírio ingênuo. Não me lembro como teria dito Pascal, só sei que é preciso considerar a infinidade de coisas que nos ultrapassa.

Parece um raciocínio bobo, porém é de uma força desconcertante: se somos todos iguais em insignificância, por que praticamos o mal com os nossos semelhantes? — não vou citar Imagine do John Lennon, o leitor pode ficar tranquilo. Pessoas escolhem praticar o mal contra outras pessoas.  Isso nos escapa. Porque essas escolhas não são determinadas por nada a não ser por…escolhas. A liberdade tem um preço alto. Podemos relutar com a consciência, no limite, a vontade de praticar o mal — e o bem — é completamente livre.

O mal humano é um absurdo justamente por ser fruto de escolhas. Já tsunamis, terremotos, tempestades, vulcões, furacões e doenças são causadas pelo arranjo da natureza. É como as coisas são, inevitavelmente. Podem ser frutos do acaso ou da necessidade, mas nunca da vontade. Não há intenção na natureza. Para os dramas humanos, ela é cega. Por causa disso, muita gente evita falar em “mal natural” a fim de reservar a palavra “mal” para os seres que realmente escolhem praticá-lo. O mal é intencional.

Como diz a historiadora da filosofia Susan Neiman em seu belíssimo livro sobre O mal no pensamento moderno (Difel, 2002), sobre os eventos naturais “queremos entender a respeito apenas o suficiente para nos ajudar a controlá-los”, por sua vez, “Auschwitz representa tudo o que queremos dizer hoje em dia quando usamos a palavra mal: atos absolutamente daninhos que não deixam espaço para justificativa e explicação”, ou seja, são absurdos.

Contudo, uma espantosa resposta acerca da presença e do significado do mal no mundo nega a liberdade e propõe a impotência da bondade. O maniqueísmo continua a exercer enorme fascínio nas pessoas que se acham “eleitas” e detentoras de uma certa “sabedoria” pública. Os maniqueus faziam parte de uma poderosa seita capaz de responder de forma simples, racional e elegante “qual a causa de praticarmos o mal?”

Respondiam assim: o eleito deve saber distinguir dois princípios: o Bem e o Mal; esses princípios têm naturezas absolutamente distintas. O pensamento maniqueísta articulava o seguinte raciocínio: De onde proveio o Mal? Se foi de um homem, de onde veio esse homem? Se veio de um anjo, de onde veio esse anjo? De um Deus… que deve ser a fonte do mal. E a fonte do bem? De outro Deus, fonte do Bem. Tudo está concatenado e amarrado, exceto esses dois deuses, que continuam distintos.

Para o maniqueísmo, tudo o que existe no universo visível é mesclado por esses dois princípios em luta. O universo material em que vivemos surgiu por que o Reino das Trevas invadiu o Reino da Luz — lembra história em quadrinhos. O Reino da Luz estava em completo repouso e ignorava as tensões entre bem e mal. Nesse sentido, o Bem é um princípio passivo e impotente diante do Mal, que atua violentamente e invade o Reino da Luz. Por ser ativa e violenta, a Escuridão invade a Luz, não o contrário.

Sendo assim, a mentalidade maniqueísta não aceita que nenhum ato contra a maldade seja um ato de bondade, pois a bondade é sempre passiva e impotente diante da maldade. O mal nunca é de responsabilidade de um ser humano, mas sempre e inequivocamente de um princípio anterior que determina toda ação humana. O que nos resta é passar por um exigente processo de purificação, que só pode ser oferecido pela “Sabedoria” dos eleitos, isto é, por aqueles que conseguiram distinguir a Luz das Trevas, a Paz da Violência, o Bem do Mal.

Resumindo. Ao proteger seu filho de um assaltante, uma mãe jamais poderá ter realizado ato legítimo para o maniqueu. Inevitavelmente, ela participou do ciclo perpétuo da maldade. O assaltante é tão vítima desse ciclo quanto ela. Mães, crianças e bandidos são almas infelizes presas em uma luta eterna entre o passivo Pai da Grandeza e a maldita Escuridão. Só o intelectual maniqueísta, no altar de sua sabedoria, é capaz de auxiliar os homens a se libertarem dessa jornada cosmogônica, pois é imitando a impotência de um deus passivo e banal que damos o primeiro passo ao Reino da Luz e Paz.

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