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Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Fui neto de treinador de futebol. Além disso, meu querido “vô Hélio” foi amigo de infância do Bellini, zagueiro e capitão do escrete brasileiro nas Copas de 58 e 62. Apesar de sempre ter admirado sua carreira semiprofissional de futebol, eu mesmo, desafortunadamente, nunca levei jeito para o esporte dos bretões ou para qualquer outro esporte. Para falar a verdade, eu gostava de fazer curtas caminhadas com o intuito de cuidar da alma. Como perdi no tal jogo da vida —  depois de também ter perdido as esperanças no proletário esporte bretão —, sem ressentimentos, aposentei as chuteiras e me tornei professor de Filosofia. O que provavelmente acontece nas melhores famílias…

Como todo moleque da minha geração que viveu para ver o fim da cultura da molecagem, eu gostava de bater uma bola com os amigos num campinho improvisado do terreno baldio que ficava perto de casa. Na época, eu morava com minha mãe em Mogi das Cruzes — a cidade natal do craque Neymar Jr. Quem nunca jogou uma pelada com as traves do gol feitas de chinelo de dedo? Hoje, depois do 7 a 1 para a Alemanha, reparei que o meu moleque prefere jogar Fifa no PS4 — ele nunca tocou no assunto de futebol comigo nem para falar de figurinhas da Copa. Apenas fico esperto com as segundas intenções do meu sogro corintiano, que andou tentando fazer a cabeça do guri. Declaro para os devidos fins que a primeira palavra que balbuciei foi “pá-pá-pá-palmeiras”.

Voltando ao futebol de rua na minha infância, não tenho motivos para esbanjar o talento nostálgico: eu fui um péssimo jogador de várzea. Para vocês terem uma ideia da ruindade da coisa, meus apelidos futebolísticos variavam entre “leite-azedo” e “cabide” (magro e branquelo). De um velho amigo, “bolacha-traquinas” (redondo e sorridente). Com esses atributos anatômicos, eu não teria futuro nem como gandula. E, se me lembro, o destino não foi generoso com o “bolacha”. Deu no que deu, para o desgosto do meu avô e para o desespero da minha mãe, que rezou como Santa Mônica para que eu me tornasse o padre da família — graças ao consolo de Nosso Senhor Jesus Cristo, cheguei o mais perto disso com minha missão de ensinar o amor à sabedoria para adolescentes.

Avaliando a minha antiga relação com o futebol, tenho mais do que certeza de que a ideia de ser um café-com-leite tinha muitíssimo a ver comigo. Em outras palavras, tratava-se de uma verdadeira vocação ser um café-com-leite. Nunca aspirei nada além dos meus limites existenciais. E quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, também disse umas verdades sobre minha vida de perneta.

Na vila onde morávamos, havia uns 15 garotos. O jogo, para ser encarado como uma decisão de vida por cada um de nós, tinha de ter pelo menos seis para cada lado: um no gol e cinco na linha. Pelo elevado senso de justiça partilhado entre os meninos que se envolviam com a causa, a questão que se colocava era: como se monta uma seleção de futebol de rua? Tinha gente ali que sonhava em jogar na seleção brasileira, chegar aonde Zico, Branco, Sócrates e Ronaldinho chegaram.

Moleques que batem bola, mesmo no futebol de várzea, levam seu talento muito a sério. O senso de justiça é inato ao moleque que joga futebol; é de causar inveja a estadistas, ativistas pelos direitos humanos e intelectuais, pois se refere a uma instituição que funciona sem precisar do Estado e sem a necessidade de apelar para políticas públicas, ações afirmativas etc. Futebol é um fato social, um genuíno processo civilizador.

Na minha época, em cada dia de jogo, dois moleques montavam seus respectivos times; noutro dia, outros dois… e assim por diante. Como o sonho da minha mãe era que eu recebesse o sacramento da Ordem, só jogava quando chegava a minha a vez de montar o meu próprio time, ou na ausência de um dos titulares. Curiosamente, eu era sempre um dos últimos a ser escolhido. Nunca fiquei indignado por isso, e deixei a vida seguir seu rumo.

Entre nós, a justiça distributiva funcionava mais ou menos assim: sabíamos por força do senso comum que, dos 15 amigos, Marrom e Chulé eram gênios; Xoxó, Neguim, Lácio e Buda — o dono da bola — jogavam bem; Pavio se consolidou como uma muralha no gol; Mula, Toco, Paulo e Sabão conheciam as regras do esporte e cumpriam com os seus papéis; Chaveiro e Robson não passavam de dois medíocres; e, por fim, não preciso dizer uma só palavra a respeito dos rigorosamente estúpidos. Juro, não guardo mágoas dessa época.

Sem quaisquer tipos de segredos para a imprensa, a escalação fechava assim: todo mundo quer jogar, mas só há 12 vagas. Como não existia “cota-perneta” e ninguém falava em exclusão social, escolhíamos o time baseado no talento dos jogadores. O resto era coisa de garotinha. E não havia passeatas em favor das minorias que sofrem preconceito por serem vexatórios “bonecos de Olinda” jogando bola. Tudo se ajustava de modo a fazer inveja a reacionários e a revolucionários, visto ser absolutamente inconcebível ter de evocar qualquer autoridade para resolver a disputa por uma vaga. Na pior das hipóteses, resolvíamos sem levar desaforo pra casa.

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