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Bandeira do movimento antifa em Viena, Áustria, 2020.
Bandeira do movimento “antifa” em Viena, Áustria, em 2020. Tem sido cada vez mais comum na retórica de esquerda classificar como “fascistas” quem discorda das pautas “progressistas”.| Foto: EFE / EPA / Florian Wieser

A cultura democrática significa o poder da livre discussão no interior do espaço público muito mais do que na ideia de um poder encarnado pela unidade soberana do povo ou no poder dos indivíduos que buscam determinar livremente suas vidas segundo seus desejos e interesses individuais. Mesmo que numa sociedade liberal hegemônica os indivíduos sejam livres para viver uma vida segundo os próprios desejos e interesses, a cultura democrática não pode ser reduzida à ideia difusa de um “poder soberano do povo” e, pior ainda, de um “poder soberano do desejo dos indivíduos”.

Assim, muito mais do que eleições, a democracia consiste no arranjo social fundado na capacidade argumentativa daqueles que participam ativa e constantemente dos assuntos da “cidade” – e não só do governo. As eleições passam, mas as responsabilidades políticas não. Tomar decisões, fazer correções normativas, validar e invalidar ideias mediante o debate público devem permanecer a alma da cultura democrática. Nesse sentido, a defesa da democracia é a defesa do espaço público como espaço de diálogo e do conflito dialógico permanente.

A destruição desse espaço parte do desejo de destruição de todo antagonismo cívico, portanto, da própria democracia. Paradoxalmente, quem fala em nome da “democracia”, como único representante autoproclamado de um ideal universal capaz de combater as ameaças fascistas, deveria ser responsabilizado como um dos principais agentes de destruição da própria democracia.

A defesa da democracia é a defesa do espaço público como espaço de diálogo e do conflito dialógico permanente

Quem se dispõe a participar do debate democrático deve ser moralmente obrigado a acompanhar cada etapa do desenvolvimento de um raciocínio de quem oferece razões para suas demandas. Noutras palavras, criticar ideias e não demonizar pessoas.

Pessoalmente, admiro a definição que o Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica dá à participação democrática e como essa participação ordena um governo democrático:

A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a exercitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelos outros, mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercitados em seu nome, por sua conta e em seu favor; é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa. Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha.”

Democracia implica na corresponsabilidade entre os membros, um pacto de civilidade que reconhece no outro um valor inviolável. É o valor político da discussão. Como ensinou Aristóteles, o animal político é o animal que fala, exige razões, oferece justificativas e toma decisões visando a manutenção do bem comum. Porém, na mesma proporção, é o animal que se põe à escuta, recebe justificativas e aceita – porque ajudou a tomar – certas decisões coletivas. Em um debate democrático, aceitar pressupostos não significa que eles sejam necessariamente verdadeiros. Trata-se, pois, de um acordo tácito onde o debate, a reflexão e a decisão possam se consolidar como consenso político, aberto politicamente à revisão democrática.

A democracia é colocada em risco toda vez que imaginamos adversários políticos como se fossem inimigos cruéis e ameaças perigosíssimas. Assim, não fazemos política, mas demonologia; não queremos justiça e bem comum, queremos identificar o mal nos outros para arrancá-lo pela raiz.

A democracia é colocada em risco toda vez que imaginamos adversários políticos como se fossem inimigos cruéis e ameaças perigosíssimas

Em 2014, quando escrevi meu livro A Imaginação Totalitária, eu estava convencido de que o problema da imaginação política não tinha a ver com esquerda e direita, mas com o potencial destrutivo deste silogismo: “Nós somos a vítima. Eles são nossos inimigos. Devemos eliminá-los”. Eu também estava convencido de que isso não era um problema dos outros antes de ser um problema realmente meu, da minha vida interior.

Não há risco maior para a democracia do que essa tentação de, ao falar como se fosse o único porta-voz da democracia, achar que sou a medida para identificar quem são os seus inimigos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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