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Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo
Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo| Foto:

A reação aos torcedores brasileiros que cantaram impropérios com a ingênua jovem russa é exagerada e apresenta o mecanismo de autodefesa da geração criada nas redes. Um sinal de alerta do que virá em termos de controle social. Preocupante. Não entrarei no mérito de ter ocorrido crime contra a honra da senhorita, sobretudo segundo leis russas — e/ou brasileiras. Ela tem todo o direito de buscar reparo dos prejuízos subjetivos ou objetivos, caso se sinta prejudicada. Assim como aos torcedores deve estar garantido o direito de defesa diante de um tribunal legítimo. Ou não é mais um direito básico o de se defender de uma grave acusação? Serão esses os novos riscos?

De qualquer forma, preocupa-me, antes de tudo, outro tipo de juízo: o martelo da justiça estrondosamente batido pelos justiceiros, que já sentenciaram os culpados. Para o tribunal internacional dos bons modos, há um parecer definitivo: os torcedores foram julgados e condenados por machismo, assédio sexual, racismo e crimes contra a humanidade — destaco: não contra a dignidade daquela jovem russa específica que aparece cantando e sorrindo com os brasileiros. É preciso enfatizar: o crime foi cometido contra todas as mulheres do mundo. Todas! Quem acusou? Todos. Quem julgou? Todos. Quem decretou a sentença? Todos. E “todos”, absolutamente todos, devem executar a sentença. Contra o ódio, a fúria dos justos. Contra os injustos, só resta a fúria do ódio.

Enquanto os torcedores aguardam a execução das penas — o que acontecerá ao pisarem no Brasil —, suas vidas privadas estão sendo vasculhadas e expostas, minuciosamente. A população mundial não tem a menor sombra de dúvida a respeito da índole desses canalhas: são canalhas; não tem a menor sombra de dúvida do que eles representam: são machistas; e, por fim, não titubeia sobre a vergonha para o povo brasileiro e para o mundo. A partir dessa Copa, carregarão o estigma dos pecados costurado na pele. Por onde forem, serão lembrados pelo vexame, pela humilhação causada a todas as mulheres, a todos os brasileiros e a todas as nações. Ninguém tolerará os intolerantes, “tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou”. Acharam a manada de porcos para onde os demônios foram mandados.

Para se ter uma ideia da dimensão dessa coisa toda, de que não é exagero chamar atenção para o exagero, aqui no Brasil, a OAB em Pernambuco emitiu uma nota dizendo que “repudia veementemente o conteúdo de um vídeo amplamente divulgado nas redes sociais em que um grupo de brasileiros ladeia uma mulher, que aparentemente não é brasileira nem fala português, e profere em coro ofensas relacionadas ao seu órgão sexual”. Segundo a OAB de Pernambuco, “a preconceituosa atitude é causa de vergonha para todos nós, brasileiros, e vai na contramão do atual contexto de luta contra a desigualdade de gênero, em que cada dia mais as instituições públicas e privadas estão em busca de soluções conjuntas para que nenhuma mulher sofra qualquer tipo de violência ou discriminação pelo fato de ser mulher”.

Notem bem: segundo eles, “ela profere em coro ofensas relacionadas ao seu órgão sexual” sem saber do que se tratava. O pressuposto: uma mulher, adulta, rodeada de homens estrangeiros, num clima de festividade regada a álcool, corneta e música de mau gosto, vendo que estava sendo filmada, visivelmente se divertindo, não tinha maturidade para saber que tipo de besteira poderia estar falando noutro idioma. A inocência é dela; a perversidade, deles. Ora, mas, se ela não compreendia o significado das palavras, como poderia se sentir ofendida? Não importa. A ofensa foi posterior, a indignação foi coletiva, mundialmente coletiva. Ela é inocente; eles, perversos. O que comove, sinceramente, é o grau de ingenuidade em cair numa piada tão bobinha e conhecida por qualquer um que já teve contato com estrangeiros divertidos. Mas está decretado que brincadeiras não são gratuitas. Tudo “deles” é a maldade que ameaça a “todos”.

A cantora Daniela Mercury — que parece ter assumido o papel de juíza da suprema corte dos inocentes — deu o veredito: “É um abuso moral. Tirei o áudio por vergonha de vocês! Um desrespeito total à mulher que vocês colocaram nessa situação covarde de humilhação e a todas as mulheres. Machistas e misóginos. Parece que ainda vivem na idade média. É nojento, patético e asqueroso!”. O mais curioso foi comparar o caso com a Idade Média. Que preguiça.

Enfim, são dois exemplos pincelados quase que aleatoriamente. Há tantos e para todos os gostos jurídicos, estéticos, sociológicos e psicológicos. O mais bizarro foi uma jornalista alegar que “a exaltação da vagina ‘rosinha’ em contraponto à genitália ‘escura’ reproduz em mais um nível o racismo arraigado do Brasil”. Dá para acreditar? Segundo seu apurado senso de justiça racial, quando um homem escolhe mulheres porque suas intimidades são “rosinhas”, há discriminação contra mulheres negras que têm suas intimidades castanhas, beges ou escuras. O homem que limitou a mulher à cor rosa de sua intimidade reproduz racismo. Constrangedor…

Tudo isso é muito constrangedor, na verdade. E, além do constrangimento, há o perigoso delírio coletivo com um grau elevado de puritanismo tóxico. Uma verdadeira caça às bruxas sem precedentes na história. Lá na Idade Média, bastava fugir para o vilarejo vizinho. Hoje, os bárbaros puritanos dominam a aldeia global marcando todos os pecadores com “compartilhamentos”, “visualizações” e “curtidas”. Trata-se de um mecanismo de autodefesa e prevenção contra toda forma de violência em vítimas imaginadas. Daqui para a frente, todos aqueles que se tornarão algozes universais precisam se fazer de vítimas universais. Não buscam destruir o pecado, mas saturam a atmosfera social de que o mundo será melhor sem pecadores. Talvez haja algo assim meio que parecido com períodos da Idade Média; talvez, perdoem-me os medievalistas.

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