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Ivonaldo Alexandre/Arquivo Gazeta do Povo
Ivonaldo Alexandre/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

Fiquei arrasado.

Ao mostrar uma história para um amigo, ele disse que eu poderia ser acusado de fanfic — referindo-se ao gênero narrativo inverossímil usado por ideólogos para mostrar que o mundo só será um lugar maravilhoso quando crianças forem mais politizadas. Durante uns três dias, pensei a respeito. Publicar ou não publicar? Embora seja uma acusação grave, não perdi o sono e nem passei por crises existenciais. Mesmo correndo o risco, resolvi publicar.

Nesta coluna, também pretendo compartilhar com meus leitores as bizarrices cotidianas que acontecem ou aconteceram comigo. Sem politizar, sem intelectualizar, sem querer salvar a civilização. Confesso não ter muito prazer e nem capacidade para elucidar certos conceitos abstratos sobre justiça social, direito internacional, religião comparada e metafísica. O espaço de um jornal nem sempre é o melhor lugar para resolver os grandes dilemas da humanidade ou descobrir se o botão nuclear do Trump é realmente maior do que o de Kim Jong-un.

Às vezes só mostrar como eu reagi em certas situações cotidianas me parece um jeito mais amigável — e por que não honesto? — de estabelecer confiança e dizer quem, afinal de contas, eu sou para os meus leitores. “Olá, passei por esta e esta situação absurda” pode ser melhor do que “minhas verdades são essas e essas”.

Li certa vez, em um livro do crítico literário James Wood — acho que foi em A coisa mais próxima da vida —, uma frase da escritora britânica George Eliot que me marcou profundamente: “a arte é a coisa mais próxima da vida; é um modo de aumentar a experiência e ampliar nosso contato com os semelhantes além do nosso destino pessoal”. O próprio James Wood, em Como funciona a ficção, diz que a criação literária revela “algo vivo, humano” e, mesmo que a narrativa não dê a noção completa de um indivíduo, “é possível conhecer seu comportamento particular nesse momento específico”. Gosto disso.

Nas férias, fiz uma maratona de Fargo — a série baseada no filme homônimo de 1996 dos irmãos Coen. Uma curiosidade: todos os episódios começam com a legenda: “ESTA É UMA HISTÓRIA VERÍDICA”. Acho isso fascinante, pois nunca pensei que fosse preciso começar uma narrativa alertando que a história corresponde à verdade. Tantas coisas estranhas e ao mesmo tempo próximas acontecem naquele universo de Minnesota que é quase inevitável você se perguntar: “Não é possível; isso só pode ser invenção”. Pelo menos se for invenção narrativa, cada temporada de Fargo é de boa qualidade, e não essas porcarias inventadas para combater a desigualdade social, a homofobia, a discriminação racial e o machismo. Fanfic é o destino de toda literatura politicamente correta.

Uma boa história de ficção não precisa alertar o leitor do que alguém fez ou do que aconteceu de verdade, mas apresentar o que poderia ter acontecido. Aristóteles, na Poética, diz que uma impossibilidade convincente é preferível a uma possibilidade inconveniente. Segundo James Wood, a tarefa do artista será nos convencer de que mesmo o impossível poderia ter acontecido. Fanfic faz o contrário: o criador de uma consegue nos convencer de que mesmo o possível jamais poderia ter acontecido.

Ninguém tomará consciência — ou terá uma catarse — de que o mundo pode ser um lugar melhor ao ler que uma garotinha de 6 anos deu lição de moral no padrasto homofóbico; e de que o padrasto, depois disso, se libertou dos preconceitos estruturais da sociedade. O debate público ideológico no Brasil, infelizmente, tem se tornado uma grande lição de moral desse tipo, uma grande Comédia humana sendo escrita por criadores de fanfic.

***

ESTA É UMA HISTÓRIA VERÍDICA E ACONTECEU COMIGO EM SÃO BERNARDO DO CAMPO.

Em 1995, pela primeira vez na vida, fui vítima de tentativa de assalto. Depois vieram outras e mais outras; todas sem êxito. Hoje posso me gabar de ser perito na arte de sofrer tentativas de assalto. Esqueçam o Krav Maga, o spray de pimenta, o chute no saco, o Estatuto do Desarmamento. Esqueçam a Oprah, a Maria do Rosário e o Bolsonaro.

Passava das 19 horas quando Marcelo, velho amigo do Senai Mario Amato, e eu saímos do Shopping Metrópole, centro de São Bernardo do Campo. Despreocupados e crentes na bondade natural do ser humano, caminhávamos até o ponto de ônibus. Para chegar até lá, precisávamos passar por debaixo de um viaduto frequentado por herdeiros do Plano Collor.

Imprevisivelmente — sem querer abusar do politicamente correto —, cinco personagens de Boyz N’ the Hood se materializaram na nossa frente e nos abordaram. Ninguém espera passar por debaixo de um viaduto a essa hora e ser convidado para um chá. São Bernardo do Campo não é o paraíso na Terra.

Os rapazes eram enormes, vestidos a caráter, não falavam mole e tinham todos os trejeitos — adquiridos por força do processo civilizacional — de quem é bom por natureza, mas corrompido pela sociedade.

— Ei, ei, ei… encosta, encosta. Perdeu playboy! — dirigiu-se a mim, acompanhado de seu acólito, quem parecia chefiar o bando.

Sem me preocupar com minhas posses — na época eu só estudava —, em nome da prudência, abri a carteira e disse para os dois cavalheiros que me cercaram: — Brother, não precisa roubar. Tá aí, só tenho o trocado do busão. Pó ficá procêis. É doação. Vou a pé, de boas.

Ao perceber que havia invertido a situação, olhei pro meu amigo, sentindo-me um membro da irmandade, e disse: — Pô, Marcelo, dá a grana pros caras, véio. Fica de “migué” escondendo cinco conto com a foto da tua mina.

Nessa hora, os rapazes caíram na gargalhada. Retomando o controle do bando, um deles olha pro Marcelo, meu amigo mão de vaca, e diz: — Véio… e seu te desse um tiro? Cê qué morrê por causa de cinco conto, mano?

Marcelo, que foi buscar confiança no fundo do fígado, olhou firme pra ele e retrucou: — Olha meu estado, estou literalmente borrando, você não pensou que eu conseguiria parar uma bala com a mão, pensou? Então, você me mataria por causa de cinco reais. A consciência é sua!

Todos riram. Eu não me aguentava.

Até que um deles chegou pra mim e disse: — Aí, sangue bom, tu é gente boa. Cê é da vida, mano?

Sem perder o timing da piada, respondi: — Pronto, já não bastasse ter de ir embora a pé, agora tão me chamando de puta.

Caímos na gargalhada. Até Marcelo, que sempre foi desconfiado, riu.

O rapaz que estava com o dinheiro chegou pra mim na maior camaradagem: —Véio, é nóis, pó ficá procê. Precisar de alguma coisa, nóis dá rolê lá no Assunção, tá ligado?

— Tô ligado, brou! — respondi no dialeto e com a fluência de um nativo.

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