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Imagem ilustrativa sobre cotas raciais.
Imagem ilustrativa.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Diante alguns dramáticos desafios sociais, os formuladores de políticas públicas, analistas políticos e ativistas se encontram frequentemente em um dilema a respeito de duas abordagens éticas para formulação e tomada de decisão política: a deontologia e o consequencialismo. Infelizmente, terei de apelar para o filosofês aqui. Pois a escolha entre essas abordagens não se trata de um capricho acadêmico; na verdade, ela reflete o tipo de justificativas oferecidas para intervenções políticas.

Meu propósito aqui é bem modesto; gostaria de refletir sobre o fato de que o debate público sobre cotas raciais no Brasil parece ser incapaz de mostrar que o problema de fundo diz respeito a esse conflito de abordagens. Como tudo gira em torno da ideia de que a sociedade é estruturalmente racista, então qualquer ação afirmativa tem valor político na medida em que sirva para uma correção histórica, independentemente de essa correção sacrificar alguns princípios republicanos.

A deontologia enfatiza a importância de seguir princípios morais universais ou regras absolutas. Segundo esta perspectiva, certas ações são consideradas moralmente corretas ou erradas em si mesmas, não importam as consequências que estão em jogo. Em termos de políticas públicas, alguém que pressupõe a deontologia como orientação insistiria na adesão rigorosa a direitos e princípios inalienáveis, como a liberdade, a igualdade e a justiça, mesmo que isso pudesse, em certas circunstâncias, levar a resultados menos favoráveis no curto prazo.

A adesão à cota racial, por princípio, destrói as instituições republicanas fundamentadas no princípio de isonomia. Mas parece que o sacrifício tem, para alguns, valido a pena

Em uma sociedade republicana, onde a ênfase está na legalidade, na participação cidadã e na proteção dos direitos individuais, a abordagem deontológica oferece uma base muito consistente para a formulação de políticas públicas, já que mudanças sociais não feririam valores éticos básicos da comunidade – mesmo sociedades altamente pluralistas como a nossa.

Por outro lado, o consequencialismo propõe uma abordagem pragmática à tomada de decisão. Seu fundamento parte do princípio de que a moralidade de uma ação deve ser validada com base em seus resultados e benefícios. Os consequencialistas justificam uma ação política na medida em que ela maximiza o bem-estar coletivo, mesmo que, para tal, princípios fundamentais tenham de ser temporariamente suspensos ou sacrificados.

Esta perspectiva é relevante em situações de crise ou quando enfrentamos dilemas insolúveis, em que a escolha menos prejudicial ou a que produz o maior benefício líquido para a maioria das pessoas é vista como a mais ética.

A adesão estrita aos princípios deontológicos pode, em alguns casos, impedir a adoção de medidas que, embora controversas, poderiam levar a melhorias significativas nas condições de vida da população. Por outro lado, o consequencialismo, com seu foco nos resultados, pode justificar ações que comprometem direitos fundamentais ou princípios éticos, desencadeando debates sobre a legitimidade das decisões políticas.

Boa parte das discussões políticas e a falta de consenso entre elas giram em torno da diferença entre essas duas formas de pensar. A implementação de políticas de ação afirmativa, em particular as cotas raciais, revela o dilema entre as abordagens deontológica e consequencialista na formulação de suas políticas. Por um lado, sob uma ótica deontológica, tais políticas podem parecer contrárias aos princípios republicanos de isonomia e igualdade perante a lei, ao introduzir distinções raciais como critério para acesso à educação e oportunidades. Ora, a adoção de cotas raciais pode ser vista como uma violação da ideia de que os direitos e deveres devem ser atribuídos sem consideração de raça, etnia ou cor.

Por outro lado, uma perspectiva consequencialista avaliaria estas políticas com base em seu potencial para gerar uma sociedade mais igualitária, pois reconhece que a correção de desigualdades históricas e estruturais exige medidas que, embora possam parecer discriminatórias no curto prazo, são projetadas para equalizar oportunidades no longo prazo.

Da minha parte, a cota racial parte do princípio de que há diferenciação racial entre brancos e pretos e que os brancos foram privilegiados ao longo da história. O defensor das cotas não parte do princípio de que a cidadania orienta a ação pública das pessoas; pelo contrário, ela leva a diferenciação racial ao limite. Por isso, para esse debate específico será sempre mais adequado argumentar em termos consequencialistas e não deontológicos. Infelizmente, a adesão à cota racial, por princípio, destrói as instituições republicanas fundamentadas no princípio de isonomia. Mas parece que o sacrifício tem, para alguns, valido a pena. Semana que vem retomo esse assunto.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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