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Para muitas pessoas, não é clara a distinção entre filosofia, política, ciência, religião e arte. Uns acreditam, piamente, que a ciência detém o monopólio de todas as indagações humanas; outros não conseguem ver que religião e filosofia dão respostas distintas para perguntas distintas; outros reduzem a atividade filosófica à militância política; e, por fim, há quem denuncie a filosofia como total perda de tempo e perfumaria literária. Todos estão enganados, e defendo que uma das disciplinas mais importantes para alunos de 15 a 19 anos é, precisamente, a filosofia. Não teria Sócrates seduzido jovens atenienses enquanto velhos políticos, no maior espírito democrático, mandaram matá-lo?

Filosofia não precisa ser obrigatória, mas alegar que adolescentes deixam de aprender mais matemática em virtude de a filosofia ter se tornado obrigatória é um sinal de alerta. Um pouco de suspeita não faz mal a ninguém. Sem falsos alarmismos, o desprezo à filosofia precisa ser levado a sério, pois vale lembrar que a liberdade constitui o alfa e o ômega da filosofia, principalmente quando se trata de libertar a alma de preconceitos e falsas opiniões.

Infelizmente, tudo fica nebuloso quando se pretende refletir sobre filosofia no Ensino Médio sem demonstrar com extrema seriedade quais são, afinal de contas, as finalidades do pensamento filosófico. Muitos dos meus colegas de profissão — sou professor de filosofia no ensino médio há 12 anos — têm uma vaga noção a respeito do que efetivamente vem a ser a própria filosofia. Sabem que é importante, mas não sabem exatamente do que a filosofia trata; sabem que é difícil, mas não sabem o que é difícil na filosofia; sabem que faz o aluno “pensar”, mas não sabem no “quê” e “como” se deve pensar; sabem que refina o “senso crítico”, mas confundem “senso crítico” com proselitismo político; e, por fim, esperam — os mais otimistas— que a filosofia ajude a formar “bons cidadãos”.

No belo samba de Noel Rosa:

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.

De tudo isso, o mais constrangedor é saber que alguns professores de filosofia não têm o menor pudor em demonstrar o prazer que sentem quando são comparados aos “bobos da corte” de uma cultura que necessita urgentemente de profissionais sérios e competentes — embora para algumas pessoas o trabalho de professor seja sacerdócio com voto de pobreza. O estereótipo do “professor de filosofia revolucionário” e “muito louco” não passa de uma caricatura grotesca que precisa ser superada e combatida. Reconheço o quanto marginalizam a disciplina de filosofia como sendo “coisa de esquerda”, porém acredito que isso tem muito mais a ver com a imaginação ideológica do que com a realidade. A maioria dos programas de filosofia que eu conheço são bem sérios e articulados. Há professores “ideólogos”? Se há, não se trata de um privilégio da filosofia.

De qualquer forma, o objeto da filosofia não é imediato para o iniciante em filosofia — pense no aluno de 15 anos tendo contato pela primeira vez com as noções de ontologia, fenomenologia, idealismo ou dedução transcendental, por exemplo. Parecem vagos e dão a impressão de colocar a filosofia em um patamar distante da vida concreta das pessoas comuns. Contudo, nada disso é verdadeiro. E absolutamente possível e querido fazer boa filosofia sem “filosofês”. Como qualquer outra disciplina escolar, a filosofia tem os seus termos técnicos que precisam ser cultivados para calibrar o entendimento da realidade.

Sem exageros, a filosofia é — ou deveria ser — a mais concreta, exata e objetiva das disciplinas. Se há vagueza, ela está em quem ensina. Por isso, cabe ao professor de filosofia assumir o compromisso profissional e as responsabilidades pedagógicas a fim de demonstrar o valor da filosofia com extrema clareza, destreza didática e rigor lógico. Se não demonstra, não é culpa da filosofia, mas do profissional que ocupa o cargo de professor. Se um professor de filosofia é vago, fala coisas confusas e incoerentes, sugiro procurar outra profissão. O compromisso exigido pela filosofia, mais do que por qualquer outra disciplina escolar que hoje se beneficia de prestígio social, é o rigor, a coerência e a precisão. O conhecimento filosófico dependente de regras básicas da lógica, não de paixão política e sentimentalismos estéticos.

Filosofia não ensina a pensar, filosofia ensina a pensar com rigor. Filosofia não é “crítica” no sentido de proselitismo ideológico, filosofia é crítica no sentido mais radical de capacidade de justificar os fundamentos de todas as nossas crenças. Sendo assim, toda postura filosófica precisa resistir às respostas fáceis e aos lugares-comuns. Ninguém precisa ser um grande filósofo para pensar filosoficamente. E conhecer a filosofia é conhecer os alicerces de todo conhecimento que se pretende verdadeiro. Disso não segue que a filosofia deverá deixar de lado a paixão e o entusiasmo poético. Só que, para a filosofia, paixão poética — ou política — depende, antes de tudo, do rigor lógico. A imaginação é bem-vinda, mas não determina a verdade. Foi por uma série de equívocos de nossa época que a disciplina de Filosofia foi jogada na gaveta das “humanas” como se fosse parte de um conjunto de saberes imprecisos ridiculamente contrastado com as “exatas”, e cuja finalidade seria formar “cidadãos mais críticos” — seja lá o que isso signifique. Não obstante, a disciplina de filosofia está entre as mais exatas de todas as disciplinas.

Gostaria de encerrar essas breves reflexões com a citação de um autor que tem me ajudado muito a pensar a respeito do ensino de Filosofia. Jacques Bouveresse, em Prodígios e Vertigens da Analogia, diz: “a questão crucial que somos obrigados a formular é evidentemente saber como a exigência de precisão tornou, na cabeça da maioria de nossos intelectuais, o inimigo número um do pensamento autêntico”, pois “vivemos numa época em que, em filosofia e no pensamento em geral, a imaginação pretende deter cada vez mais e até deter sozinha o próprio poder legislativo, e trata a razão apenas como mera executante da vontade. A onipotência assim atribuída à imaginação, e a tendência a ridicularizar todas as eventuais tentativas de distinguir entre diferentes tipos de produção (teorias científicas, especulações filosóficas, mitos, ficção literária etc.) [constitui] ao menos por certo uma das características mais fundamentais da mentalidade ‘pós-moderna’. Afirmo que padecemos hoje de todos os inconvenientes da substituição sistemática das normas cognitivas por critérios que sempre são, em última análise, de natureza mais ou menos estética” — e, eu acrescentaria, ideológica.

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