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Cena do filme “Minority Report – a nova lei” (2002), adaptação para o cinema do livro de Philip K. Dick.
Cena do filme “Minority Report – a nova lei” (2002), adaptação para o cinema do livro de Philip K. Dick.| Foto: Reprodução

Um dos maiores perigos para a democracia é o de presumir, de antemão, que a ameaça à ordem democrática está apenas nos nossos adversários, que as trevas e a maldade emanam tão somente do "outro". Nós? Nem pensar. Somos os verdadeiros democráticos, os verdadeiros guardiões do bem e da ordem, hoje e para sempre.

Ora, quem pensa assim esquece alguns elementos fundamentais da condição humana para a vida política: ser consciente de que, para aquém dos meus adversários, eu também sou um potencial agente de injustiça. Saber que a política, para além de toda pretensão de antever o futuro, precisa saber lidar com o imprevisível e que pessoas boas são capazes de cometer as piores atrocidades.

Não foi nenhuma coincidência que os totalitários se autocompreendiam como seres imaculados, detentores da única concepção possível de fim da história. Enquanto o “outro”, ou seja, todos aqueles que não rezavam na mesma cartilha ideológica, era considerado o inimigo, o perverso, a ameaça. Trata-se de uma tragédia muito bem documentada e por isso temos a obrigação de não a esquecer.

Aqui gostaria de enfatizar o “presumir de antemão”, porque não há nada mais autoritário do que cercear a liberdade de alguém porque, de repente, nos tornamos capazes de antecipar seu crime, a exemplo do perturbador conto de ficção científica de Philip K. Dick, The Minority Report, publicado 1956 e depois adaptado para o cinema por Steven Spielberg.

Ora, quem pensa assim esquece alguns elementos fundamentais da condição humana para a vida política: ser consciente de que, para aquém dos meus adversários, eu também sou um potencial agente de injustiça

Em sua narrativa, Philip K. Dick apresenta uma sociedade do futuro em que três médiuns são capazes de prever todos os crimes por antecipação. Chamadas de precogs, essas três pessoas estão ligadas a uma máquina e são usadas por uma divisão da polícia para prender suspeitos antes que eles possam cometer qualquer crime real. Philip K. Dick, obcecado pelo tema, convida-nos a refletir a respeito da relação entre autoritarismo e liberdades individuais.

Creio que para a democracia funcionar adequadamente, não podemos, por antecipação, presumir que só os outros são os potencialmente antidemocráticos. Não faz o menor sentido apelar para o autoritarismo preventivo a fim de salvar a democracia. Ou a democracia é efetivamente democrática ou não é. A justificativa de que um governo está protegendo a democracia de potenciais ameaças futuras que vem sempre do outro é pura e simplesmente a síntese do autoritarismo.

Os eventos antidemocráticos de 8 de janeiro não podem servir de justificativas para o autoritarismo em nome da defesa da democracia, tal como pretende o atual governo com o seu chamado “Pacote da Democracia”, que dentre outras coisas “pretende criminalizar postagens que incitem a violência contra instituições na internet” e ainda a “responsabilizar plataformas que não derrubem publicações antidemocráticas”.

De tudo o que o “Pacote da Democracia” traz, o que mais chama atenção é o seguinte: empresas administram as redes sociais serão obrigadas a retirar do ar conteúdos considerados antidemocráticos, que violem as leis de proteção à democracia, antes mesmo de decisão judicial. Ou seja, trata-se remoção preventiva de supostos crimes contra a ordem democrática. Mas a pergunta é simples: como considerar um conteúdo criminoso sem uma decisão judicial?

Elias Vaz, o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, defendeu que “à medida que você identifica um comportamento claro contra a democracia, não pode ficar esperando decisão judicial para tirar [as publicações do ar]”.

Algumas perguntas: Quais critérios deverão ser usados para definir o significado “de um comportamento claro contra a democracia”? Quem define? Se existir quaisquer dúvidas sobre “comportamentos claros”, não são tão claros assim. Portanto, cabe processo legal. Quem julgará? Se for removido arbitrariamente o conteúdo sem o devido processo, estamos num Estado de exceção operado por um departamento de polícia ao estilo precogs. E o que é pior, pois no conto de Philip K. Dick, processos judiciais, ainda que preventivos, eram instaurados. Na nossa democracia da era pré-crime, não.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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