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Abadia no Carvalhal/Reprodução
Abadia no Carvalhal/Reprodução| Foto:

Encontrei uma cidade onde sol da liberdade brilha para todos. Brilhou tão forte que trouxe tristeza e desolação. Ela não existe apenas em sonhos e contos de fadas. Está aqui, entre nós, e será edificada por cada um nós, homens livres, iguais e independentes. Todo idealista utópico acredita ter encontrado a medida da terra fértil em que será edificada a sua Cidade Eterna. O liberal não é diferente, por mais que diga o contrário. Ele também acredita com todas as suas forças e fraquezas ter encontrado o lugar onde o reino do desejável coincide com o reino do possível: o indivíduo enraizado em si mesmo.

Para além de quaisquer disputas entre idealismo e realismo político, isto é, a disputa entre aqueles que pensam a política para além do jogo de forças e aqueles que reduzem a política a um mero jogo de forças, o pensamento liberal se orgulha de ter criado um Estado neutro desprovido de religião e distinto da ética. Nesse reino, o poder do indivíduo se funda na liberdade e a liberdade na satisfação dos desejos individuais. Questões religiosas e de “costumes” não podem ultrapassar os limites da intimidade. Como reza o segundo mandamento: são todas questões de foro íntimo.

Para o liberalismo radical, só faz sentido falar em indivíduos, que são iguais em natureza e vivem para maximizar bem-estar e minimizar sofrimento. Antagônico ao sonho fascista, a mentalidade liberal utópica prescreve: “Tudo no Indivíduo, nada contra o Indivíduo, e nada fora do Indivíduo”.

Nessa paisagem edificante, o Estado neutro tem uma única função política: garantir que ninguém interfira nas escolhas de seus semelhantes. Tudo é permitido e qualquer coisa serve; exceto invadir a intimidade alheia. Se alguém quiser se matar? Tudo bem, desde que não faça mal ao seu vizinho. Se quiser se drogar? Sem problemas. Pode usar. Mas lembre-se, desde que financie o próprio vício. Virtude é a capacidade de “bancar” a própria independência. Vício, tudo o que interrompe o fluxo das preferências individuais. Socialmente, o único paradigma ético é a livre satisfação dos desejos. É um mundo que promete fartura e seres humanos plenamente satisfeitos.

Visto dessa forma, os liberais despolitizam a sociedade e buscam criar um reino de paz, progresso e bem-estar. E as raízes desse mundo só podem ser alcançadas com o conforto material. Feliz de quem empreende. As forças econômicas e o empreendedorismo fazem a roda da fortuna girar.  Elas brotam dos infalíveis desejos dos indivíduos em serem apenas felizes. Todos querem, todos podem. Não há espaço para tristeza e fraqueza. A doença é vergonha. Em um mundo assim, a única referência social, econômica e política é o bem-estar estético do indivíduo — livre, autossuficiente, soberano. A competição saudável mediante a troca voluntária entre indivíduos gera progresso; o progresso gera conforto; e o conforto, mais indivíduos felizes.

Desastrosamente, se um indivíduo não funciona para competir mediante trocas voluntárias, não funciona para gerar bem-estar. Se não funciona para gerar bem-estar, ninguém tem nada a ver com isso. O mundo liberal é um mundo onde os fracos não têm vez. Como a relação política se dá entre Estado e indivíduos, cabe às instituições voluntárias, como religião e família, cuidar dos fracos — mas desde que reserve suas crenças ao foro íntimo. Se não cuida, cada um que se vire para cuidar de si mesmo. O senso de comunidade é um contrassenso.

Deve-se enfatizar o seguinte: O Estado liberal não pode ser invadido pela religião porque não pode ser invadido pelo senso de comunidade para além do que é terreno e individual. Não há mediações entre Estado e indivíduo. Há indivíduos definhado na servidão voluntária de seus desejos egoístas. O Estado é neutro. A utopia liberal produz sua própria distopia. O otimismo progressista, sua falência.

A neutralidade política, paradoxalmente, permite que o Estado avance para esferas que não dizem respeito à política. A consequência lógica da despolitização total das relações entre os indivíduos produz seu reverso institucional: a politização total do Estado. Essa é uma visão levada às últimas consequências lógicas. Pois não teria sido justamente uma consequência lógica do Estado neutro liberal o advento do Estado total? É uma sugestão. Se não há mais nada entre indivíduos, o que sobra além da ideia de que “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”?

Sem forças mediadoras entre Estado e indivíduo, como a Igreja e a família, promessa e memória, por exemplo, o Estado assume totalmente o controle do sentido da história, do seu final feliz. E para mim foi essa a mensagem que Amour — filme francês ganhador da Palma de Ouro em 2012 e do Óscar de melhor filme estrangeiro — passou. Muito mais do que abordar o tema da incondicionalidade do amor na velhice, o filme dirigido por Michael Haneke revela, antes de tudo, a falência do individualismo moderno. É o retrato mais fiel e corajoso que já vi acerca da distopia liberal. A vida moderna pode ser muito bonita em planilhas de Excel e tabelas no PowerPoint, mas a vida humana não é uma abstração.

Amour é um dos filmes mais tristes que eu já assisti. Ele conta a história de um casal de idosos, Anne e Georges, e nos faz pensar no que significa envelhecer e se tornar um peso indigno para o outro e para a sociedade. Eles são professores aposentados e vivem sozinhos em um apartamento em Paris. Por causa de complicações numa cirurgia, Anne tem metade do corpo paralisado. O marido promete jamais interná-la em um hospital. Cuidará dela sozinho. Os dois mergulham numa espiral irreversível de declínio físico, mental, moral e existencial. A tristeza não tem fim. Qual a esperança além do sofrimento senão morrer? Tudo é solidão. O amor persiste, mas não comove tanto quanto o sofrimento.

O resquício de consciência de Anne é o de dor física e moral, já que não suporta a ideia de ser um peso indigno na vida do marido, que se dispõe a cuidar dela em todos os detalhes da vida doméstica. E a filha do casal? Deixo para os leitores descobrirem como podemos ser pais de filhos impotentes. O filme tem um final que não deixa pedra sobre pedra, são as ruínas do humanismo materialista. Pessimismo niilista? Não vou dar spoilers.

De qualquer maneira, trata-se de um final que poderia vir com a legenda: “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”. O fim encontra o início. Fecha-se o ciclo onde a única coisa revelada é o abandono. A primeira cena de Amour mostra a polícia arrombando a porta para entrar no apartamento. Eles encontram o corpo de uma idosa na cama, está morta. Não há ninguém ali. Só a polícia e o defunto de um indivíduo em decomposição. Para o Estado neutro, nada além de estatísticas.

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