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Uma ilustração inglesa de 1899 mostra similaridades entre o “ibero-irlandês” (sic) e o “negro”, inferiores ao “anglo-teutônico”.
Uma ilustração inglesa de 1899 mostra similaridades entre o “ibero-irlandês” (sic) e o “negro”, inferiores ao “anglo-teutônico”.| Foto: Strickland Constable

Em seu livro Purificar e Destruir – Usos Políticos dos Massacres e dos Genocídios, o sociólogo francês Jacques Sémelin explora como a mente humana, em contextos históricos e sociais específicos, é capaz de criar a noção de “inimigo a ser combatido e destruído” a partir do imaginário da angústia e medo. A frase “faça-se de vítima, e tudo será permitido” expõe perfeitamente bem o problema da violência racial.

A história dos genocídios e massacres fornece exemplos tangíveis de como a violência contra determinados grupos étnicos é justificada por estruturas imaginárias, que são muito mais complexas do que o debate atual no Brasil, que simplifica tudo em termos de “racismo estrutural” e “racismo reverso não existe”. Estruturas imaginárias condição a experiência histórica e não são pura e simplesmente determinadas por elas.

Sémelin escreve: O primeiro ponto dessa retórica imaginária consiste em transformar a angústia coletiva, que mais ou menos se propagou na população, em um sentimento de medo intenso em relação a um inimigo, cuja periculosidade será exposta. De fato, angústia e medo não têm a mesma natureza. A angústia é difusa ou até inapreensível, enquanto as causas do medo são mais facilmente nomeadas e, portanto, identificáveis. O que se busca é, de certa forma, 'coagular' essa angústia em um 'inimigo', ao qual se atribui uma 'figura' concreta e cuja malignidade é denunciada dentro da própria sociedade. Os discursos mais extremados retratam essas figuras do inimigo como assustadoras ou até diabólicas.

O racismo não se limita à discriminação de brancos contra negros, mas pode ser direcionado a qualquer grupo étnico ou racial percebido como "o outro" enquanto ameaça diabólica

A violência racial, direcionada contra certos grupos étnicos, surge de uma disposição existencial antes mesmo de fundamentar uma realidade social estrutural. Essa disposição é resultado de uma profunda crise pessoal de significado, motivada subjetivamente, e não apenas pelo conjunto de conceitos que circulam no espaço político. O que subjaz à disposição existencial para práticas de violência étnica, ou simplesmente racista, pode ser influenciado por experiências históricas, mas não é totalmente determinado por elas. Compreender isso não é negar o racismo estrutural, mas, de fato, buscar entender como a mente humana é capaz de realizar isso.

De fato, a mentalidade racista se apropria de certas ideias e busca interpretá-las à luz de sua própria crise existencial, principalmente para retratar a figura do “outro” como diabólica. Trata-se de um problema de inquietação e fragilidade interior, não apenas de estrutura social e histórico de preconceitos enraizados numa cultura. A violência étnica e a experiência histórica dos preconceitos raciais são consequências, não as causas primárias dessas disposições. O problema grave é o que condiciona os indivíduos a agirem assim e a forma mental que legitima a justificação de violência.

O racismo, em sua essência, é uma manifestação de uma mentalidade. Ele não se limita à discriminação de brancos contra negros, mas pode ser direcionado a qualquer grupo étnico ou racial percebido como "o outro" enquanto ameaça diabólica. A noção de "o outro" é socialmente construída a partir da disposição existencial e do imaginário do medo. A afirmação de que apenas os negros sofrem racismo simplifica a complexidade da predisposição humana à violência, reduzindo-a a expressões simplistas tais como “não existe racismo reverso porque não há racismo de negros contra brancos, já que os brancos são a única fonte da história racista no Brasil”.

Nesse contexto, o racismo torna-se uma ferramenta poderosa para consolidar a identidade de um grupo em detrimento de outro. Ao identificar e demonizar "o outro", cria-se uma sensação de que a realização da nossa felicidade foi impedida justamente por causa do que “fizeram conosco”. Esse processo, como descrito por Sémelin, é alimentado por medos e angústias, subjetivamente motivadas, mas compartilhadas em grupo, que são canalizados e direcionados contra um alvo específico. Nesse sentido, é possível, como já vimos em vários momentos da história (Ruanda, Armênios, Judeus e tantos outros), ter perseguições étnicas de brancos contra brancos, negros contra negros, negros contra brancos e brancos contra negros. Até porque, as realidades étnicas não se limitam às classificações raciais “brancos” e “negros”, que só fazem sentido no imaginário reducionista de alguns especialistas ideologicamente comprometidos. É preciso pensar para além do racismo estrutural se tivermos interesse em compreender como certos massacres acontecem.

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